Instruções
de Allan Kardec ao movimento espírita.
Compilação
de artigos da Revista espírita e de Obras póstumas contendo
orientações e diretrizes ao movimento espírita.
Organizado
por Evandro Noleto Bezerra.
capítulo XXIII
- O Espiritismo é uma religião?8

Por certo não era assim que o entendia Jesus, ao dizer: “Quando
duas ou mais pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí estarei entre elas.”
Reunidos em meu nome, isto é, com um pensamento comum; mas não se pode estar
reunido em nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, sua doutrina.
Ora, qual é o princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade
em pensamentos, palavras e ações. Mentem os egoístas e os orgulhosos quando se
dizem reunidos em nome de Jesus, porque Jesus não os conhece por seus
discípulos.
Chocados por esses abusos e desvios, há pessoas que negam a
utilidade das assembleias religiosas e, em consequência, a das edificações
consagradas a tais assembleias. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor
construir asilos do que templos, uma vez que o templo de Deus está em toda
parte e em toda parte Ele pode ser adorado; que cada um pode orar em casa e a
qualquer hora, enquanto os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de lugar
de refúgio.
Mas, porque cometeram abusos, porque se afastaram do reto caminho,
devemos concluir que não existe o reto caminho e que tudo quanto se abusa seja
mau? Não, certamente. Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da
comunhão de pensamentos, que deve ser a essência das assembleias religiosas; é
ignorar as causas que a provocam. Concebe-se que os materialistas professem
semelhantes ideias, já que em tudo fazem abstração da vida espiritual, mas da
parte dos espiritualistas e, melhor ainda, dos espíritas, seria um contrassenso.
O isolamento religioso, assim como o isolamento social, conduz ao egoísmo.
Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, largamente dotados
pelo coração, para que sua fé e caridade não necessitem ser revigoradas num
foco comum, é possível, mas não é assim com as massas, por lhes faltar um
estimulante, sem o qual poderiam se deixar levar pela indiferença. Além disso, qual
o homem que poderá dizer-se bastante esclarecido para nada ter a aprender no
tocante aos seus interesses futuros? Bastante perfeito para abrir mão dos
conselhos da vida presente?
Será sempre capaz de instruir-se por si mesmo? Não; a maioria necessita
de ensinamentos diretos em matéria de religião e de moral, como em matéria de
ciência. Incontestavelmente, tais ensinos podem ser dados em toda parte, sob a
abóbada do céu, como sob a de um templo; mas por que os homens não haveriam de
ter lugares especiais para as questões celestes, como os têm para as terrenas?
Por que não teriam assembleias religiosas, como têm assembleias políticas, científicas
e industriais? Aqui está uma bolsa onde se ganha sempre. Isto não impede as
edificações em proveito dos infelizes. Dizemos, ademais, que haverá menos
gente nos asilos quando os homens compreenderem melhor seus interesses
do Céu.
Se as assembleias religiosas — falo em geral, sem aludir a nenhum
culto — muitas vezes se têm afastado de seu objetivo primitivo principal, que é
a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino ali ministrado nem sempre tem
acompanhado o movimento progressivo da humanidade, é que os homens não
progridem todos ao mesmo tempo. O que não fazem num período, fazem em outro; à
proporção que se esclarecem, veem as lacunas existentes em suas instituições, e
as preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em relação ao grau de
civilização, torna-se insuficiente numa etapa mais avançada, e restabelecem o
nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do progresso em todas as
coisas; marca uma era de renovação.
Saibamos, pois, esperar, não exigindo de uma época mais do que ela
pode dar. Como as plantas, é preciso que as ideias amadureçam, para que seus
frutos sejam colhidos. Saibamos, além disso, fazer as necessárias concessões às
épocas de transição, porque na natureza nada se opera de maneira brusca e
instantânea.
Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve
ser a comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer
dizer laço. Uma religião, em sua acepção larga e verdadeira, é um laço
que religa os homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de
crenças; consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios
codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. É nesse sentido que se
diz: a religião política; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião
não é sinônima de opinião; implica uma ideia particular: a de fé
conscienciosa; eis por que se diz também: a fé política. Ora, os
homens podem filiar-se, por interesse, a um partido, sem ter fé nesse partido,
e a prova é que o deixam sem escrúpulo, quando encontram seu interesse alhures,
ao passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável; persiste à custa
dos maiores sacrifícios, e é a abnegação dos interesses pessoais a verdadeira pedra
de toque da fé sincera. Todavia, se a renúncia a uma opinião, motivada pelo
interesse, é um ato de desprezível covardia, é, não obstante, respeitável quando
fruto do reconhecimento do erro em que se estava; é, então, um ato de abnegação
e de razão.
Há mais coragem e grandeza em reconhecer abertamente que se enganou
do que persistir, por amor-próprio, no que se sabe ser falso, e para não se dar
um desmentido a si próprio, o que acusa mais obstinação do que firmeza, mais
orgulho do que razão, e
mais fraqueza do que força. É mais ainda: é hipocrisia, porque se quer
parecer o que não se é; além disso é uma ação má, porque é encorajar o erro por
seu próprio exemplo.
O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo,
é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os
pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que
se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do
que ao espírito.
O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une,
como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a
solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas.
É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a
religião da família.
Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião?
Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o
Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a
Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos não
sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias Leis da
natureza.
Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma
religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas ideias
diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de
culto; porque desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não
tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que
uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em
matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de
cerimônias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e dos
abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na
acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar- se com um título sobre
cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se
diz: Doutrina filosófica e moral.
As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto
é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos
de que se ocupa; pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de
serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que, por isso, sejam tomadas
por assembleias religiosas.
Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é
perfeitamente clara, e a aparente confusão não provém senão da falta de uma
palavra para cada ideia.
Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles não
estão unidos entre si por nenhum contrato material, por nenhuma prática
obrigatória. Qual o sentimento no qual se deve confundir todos os pensamentos?
É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade
para com todos ou, em outras palavras, o amor do próximo, que compreende os
vivos e os mortos, pois sabemos que os mortos sempre fazem parte da humanidade.
A caridade é a alma do Espiritismo; ela resume todos os deveres do
homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes, razão por que se pode
dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade.
A caridade é, porém, ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo,
cujo inteiro alcance deve ser bem compreendido; e se os Espíritos não cessam de
pregá-la e defini-la é que, provavelmente, reconhecem que isto ainda é necessário.
O campo da caridade é muito vasto; compreende duas grandes
divisões que, em falta de termos especiais, podem designar- se pelas expressões
caridade beneficente e caridade benevolente.
Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional
aos recursos materiais de que se dispõe, mas a segunda está ao alcance de todos,
do mais pobre como do mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada,
nada além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência.
O que é preciso, então, para praticar a caridade benevolente?
Amar ao próximo como a si mesmo. Ora, se amar ao próximo tanto
quanto a si, amá-lo-á muito; agir-se-á para com outrem como se quereria que os
outros agissem para conosco; não se quererá nem se fará mal a ninguém, porque
não quereríamos que no-lo fizessem.
Amar ao próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de
animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo
desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar aos inimigos e retribuir o mal
com o bem; é ser indulgente para as imperfeições de seus semelhantes e não
procurar o argueiro no olho do vizinho, quando não se vê a trave no seu; é esconder
ou desculpar as faltas alheias, em vez de se comprazer em as pôr em relevo por
espírito de maledicência; é ainda não se fazer valer à custa dos outros; não
procurar esmagar ninguém sob o peso de sua superioridade; não desprezar ninguém
pelo orgulho.
Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a
qual a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro espírita, como do
verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: Fora da caridade não
há salvação, pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no outro
mundo.
Quantas coisas haveria a dizer sobre este assunto! Que belas instruções
não nos dão os Espíritos incessantemente! Não fosse o receio de alongar-me em
demasia e de abusar de vossa paciência, senhores, seria fácil demonstrar que,
se colocando no ponto de vista do interesse pessoal, egoísta, se se quiser,
porque nem todos os homens estão ainda maduros para uma completa abnegação,
para fazer o bem unicamente por amor do bem, digo que seria fácil demonstrar
que têm tudo a ganhar em agir deste modo, e tudo a perder agindo diversamente,
mesmo em suas relações sociais; depois, o bem atrai o bem e a proteção dos bons
Espíritos; o mal atrai o mal e abre a porta à malevolência dos
maus. Mais cedo ou mais tarde o orgulhoso será castigado pela humilhação,
o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas esperanças, o hipócrita
pela vergonha de ser desmascarado; aquele que abandona os bons Espíritos por
estes é abandonado e, de queda em queda, finalmente se vê no fundo do abismo,
ao passo que os bons Espíritos erguem e amparam aquele que, nas maiores
provações, não deixa de se confiar à Providência e jamais se desvia do reto
caminho; aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum
pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal. Assim, de um lado, ganho
assegurado; do outro, perda certa; cada um, em virtude do seu livre-arbítrio, pode
escolher a sorte que quer correr, mas não poderá queixar-se senão de si mesmo
pelas consequências de sua escolha.
Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na
alma e em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do
presente; na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e
de adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos seres mais
imperfeitos; na felicidade crescente com a perfeição; na equitativa remuneração
do bem e do mal, segundo o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade
da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma
criatura; na duração da expiação limitada à da imperfeição; no livre-arbítrio
do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na
continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo invisível; na
solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros,
encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma
das fases da vida do Espírito, que é eterno; aceitar corajosamente as
provações, em vista de um futuro mais invejável que o presente; praticar a
caridade em pensamentos, em palavras e obras na mais larga acepção do termo; esforçar-se
cada dia para ser melhor que na véspera, extirpando toda imperfeição de sua alma;
submeter todas as crenças ao controle do livre exame e da razão, e nada aceitar
pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos
pareçam, e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas
da Ciência, a revelação das Leis da natureza, que são as Leis de Deus: eis o Credo,
a religião do Espiritismo, religião que pode conciliar-se com todos os
cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir
todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue
todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.
Com a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em paz e
se pouparão males inumeráveis, que nascem da discórdia, por sua vez filha do
orgulho, do egoísmo, da ambição, da inveja e de todas as imperfeições da
humanidade.
O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a sua
felicidade aqui na Terra, porque lhes ensina a se contentarem com o que têm.
Que os espíritas sejam, pois, os primeiros a aproveitar os benefícios que ele
traz, e que inaugurem entre si o reino da harmonia, que resplandecerá nas
gerações futuras.
Os Espíritos que nos cercam aqui são inumeráveis, atraídos pelo
objetivo que nos propusemos ao nos reunirmos, a fim de dar aos nossos
pensamentos a força que nasce da união. Ofereçamos aos que nos são caros uma
boa lembrança e o penhor de nossa afeição, encorajamentos e consolações aos que
deles necessitem. Façamos de modo que cada um recolha a sua parte dos
sentimentos de caridade benevolente, de que estivermos animados, e que esta
reunião dê os frutos que todos têm o direito de esperar.
8 N.T.: A resposta a esta pergunta foi dada por Allan Kardec na Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, em 1o de novembro de 1868, na Sessão anual
comemorativa dos mortos.
Apenas transcrevemos o trecho diretamente relacionado com o tema:
“O Espiritismo é uma religião?” O artigo integral está na Revista espírita de
dezembro de 1868, 2. ed. 2. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2010.
Allan Kardec
(Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 11,
dez. 1868.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário