[...] Assim sendo, qual o papel
do sistema nervoso, durante a vida?
É incontestável que a integridade da memória está ligada ao bom
funcionamento do cérebro, porque muitas moléstias que atingem esse órgão têm
como resultado enfraquecer e mesmo suprimir, completamente, a memória dos
acontecimentos recentes, em totalidade ou em parte.
Parece, pois, evidente, que, durante a vida, o cérebro é uma condição
indispensável da memória. Mas aqui intervém uma segunda consideração,
que me parece também da mais alta importância. É que o esquecimento que
se verifica durante o curso da vida, ou depois das desordens orgânicas, não é
fundamental, irredutível, mas aparente, visto que, por meio de diversos
processos, é possível, por vezes, fazer renascerem essas lembranças, que
pareciam aniquiladas para sempre.
Vamos demonstrá-lo por diversos exemplos.
Antes, porém, não é inútil lembrar algumas noções muito gerais,
relativas a esse fenômeno misterioso, que ressuscita o passado e no-lo torna,
por assim dizer, atual.
Segundo Ribot, a memória compreende, na acepção corrente da
palavra: a conservação de certos estados, sua reprodução, sua localização no
passado. Isto não é, entretanto, senão uma espécie de memória, a que se
pode chamar perfeita. Aqueles três elementos são de valor desigual; os
dois primeiros são necessários, indispensáveis; o terceiro, que na
linguagem de escola se chama de reconhecimento, completa a memória, mas não a
constitui.
O fato me parece tanto mais verdadeiro, quanto a lembrança está ligada,
durante a vida, ao bom funcionamento do sistema nervoso. Mas, se a memória
parece falha, não quer isto dizer que as lembranças fiquem aniquiladas,
senão que o poder de as acordar foi momentaneamente paralisado, e que pode
reaparecer quando as causas que o suprimiram cessarem de existir.
O termo geral de memória compreende muitas variedades, e, entre
os diversos indivíduos, o poder de renovação das sensações antigas é muito
diferente. Uns possuem a memória visual muito desenvolvida, como os pintores
Horace Vernet ou Gustave Doré, que podiam fazer um retrato de memória; em
outros é o senso musical que atinge alto grau de perfeição, como Mozart,
que escreveu o Miserere da Capeia Sistina, tendo-o ouvido apenas duas vezes.
Entretanto, para que uma sensação fique registrada em nós, duas
condições, pelo menos, são necessárias: a intensidade e a duração.
Eis, segundo Ribot, a importância desses dois fatores (60)
A intensidade é uma condição de caráter muito variado. Nossos
estados de consciência lutam sem cessar para se suplantarem; a vitória pode
resultar da força do vencedor ou da fraqueza dos outros lutadores. Sabemos que
o mais vivo estado pode decrescer continuamente, até o momento em que cai
abaixo do umbral da consciência, isto é, em que uma de suas condições de
existência faz falta. E bem certo dizer que a consciência, em todos os
degraus possíveis, por menores que sejam, admite modalidades infinitas -
estados a que Maudsley chama subconscientes - mas nada autoriza a dizer
que esse decrescimento não tenha limite, posto que ele nos escape.
Não se tem tratado da duração, como condição necessária da
consciência. Ela é, entretanto, capital.
Os trabalhos executados há uns 30 anos determinaram o tempo necessário
para as diversas percepções. Ainda que os resultados variem segundo os
experimentadores, as pessoas, as circunstâncias e a natureza dos estados
psíquicos estudados, está, pelo menos, estabelecido que cada ato psíquico
requer uma duração apreciável e que a pretendida rapidez infinita do
pensamento não passa de uma metáfora.
Isto posto, é claro que toda ação nervosa, cuja duração é
inferior à que requer a ação psíquica, não pode despertar a consciência.
Acrescentemos que é preciso, ainda, fazer intervir a atenção,
para que uma sensação se torne consciente. E notório, com efeito, que,
se somos absorvidos por um trabalho interessante, não ouviremos mais o som do
timbre do pêndulo, que, entretanto, fere sempre o nosso ouvido com a mesma
força. Nosso espírito, ocupado alhures, não transforma esta sensação em
percepção, isto é, nós não temos dela consciência.
E muito curioso fazer observar que as sensações despercebidas pelo
eu normal podem reaparecer, colocado o paciente em sono magnético.
Eis um exemplo tomado a Desseoir:
X..., absorvido pela leitura, entre amigos que conversavam, teve
subitamente sua atenção despertada, ouvindo pronunciar-lhe o nome. Perguntou
aos amigos o que tinham dito dele. Não lhe responderam; hipnotizaram-no. No
sono, pôde repetir toda a conversa que havia escapado ao seu eu acordado. Ainda
mais notáveis é o fato assinalado por Edmond Gurney e outros observadores, o de
que o paciente hipnótico pode apanhar o cochicho de seu magnetizador, mesmo
quando este está no meio de pessoas que conversam em alta voz.
Nestes exemplos, a duração e a intensidade foram
suficientes para gravar no sistema nervoso e no perispírito as
palavras pronunciadas; mas, fazendo falta a atenção, não se produziu à memória
consciente do estado de vigília, e o Indivíduo ignorou o que dele se disse;
adormecido magneticamente, esse estado vibratório geral, a que os
fisiologistas chamam sinestesia, aumentou, as vibrações auditivas
tornaram-se mais intensas e o paciente pôde então delas tomar conhecimento.
Não são, apenas, as lembranças do estado de vigília que o
sonambulismo reconstituí, mas também as dos estados sonambúlicos anteriores,
por forma que parece existir no mesmo indivíduo duas espécies de lembranças
perfeitamente coordenadas, que se ignoram completamente. A observação que segue
é disto palpitante exemplo (61)
O Dr. Dufay, senador de
Loire-et-Cher, publicou a observação sobre uma jovem que, em acesso de
sonambulismo, tinha fechado numa gaveta joias que pertenciam à sua patroa.
Esta, não encontrando as joias no lugar em que as deixara, acusou a criada de
as haver roubado. A pobre moça protestava sua inocência, mas não podia dar
qualquer esclarecimento sobre a desaparição dos objetos perdidos. Foi posta na prisão
de Blois. O Dr. Dufay era então médico
do presídio. Conhecia a detenta, por ter feito nela algumas experiências de
hipnotismo. Adormeceu-a e interrogou-a sobre o delito de que a acusavam; ela
lhe contou, então, com todos os pormenores desejáveis, que nunca houvera
intenção de roubar a patroa, mas, que uma noite lhe viera à ideia de que certas
joias pertencentes à senhora não estavam em segurança, no móvel em que se
achavam, e que, por isso, as fechara em outro móvel. O juiz de instrução foi
informado desta revelação. Dirigiu-se ele à casa da senhora roubada e achou as
joias na gaveta indicada pela sonâmbula. Ficou claramente demonstrada a
inocência da detenta e ela foi posta desde logo em liberdade. [...]
(60) Les Maladies de Ia Mémoire, pág. 23.
(61) Pitres - Leçons sur 1'Hysterie et
i'Hypnotisme, pag. 200.
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