BRASIL, CORAÇÃO DO MUNDO, PÁTRIA
DO EVANGELHO
8 - A invasão holandesa
Se à raça negra eram impostas as mais dolorosas torturas nos primórdios
da organização do Brasil, não menores sacrifícios se exigiam dos indígenas,
acostumados à amplitude da terra, propriedade deles.
As “entradas” pelo sertão, com o fito de escravizar os selvagens
indefesos, se realizavam, naquele tempo, em todos os recantos.
Tabas prósperas eram incendiadas de surpresa, no silêncio da noite. São
famosas e comovedoras as descrições que desses fatos guardam os documentos
antigos. Somente de uma vez, uma caravana de portugueses capturou mais de sete
mil homens válidos, mulheres, velhos e crianças. E quando os mamelucos
guiadores não convenciam os naturais de que deviam acompanhá-los às cidades
mais próximas, para que as caçadas humanas se verificassem com pleno êxito, as
cenas de selvajaria nodoavam a floresta virgem, enchendo de pavor os caminhos
atapetados de cadáveres e de sangue coagulado. Como represália a tantas
crueldades, os Tamoios nunca se harmonizaram com os portugueses. Desde o
princípio da ação destes, foram seus declarados inimigos.
No seio dessas lutas devastadoras, em que venciam, a maior parte das
vezes, as criminosas astúcias dos colonos, eram os padres piedosos os que mais
sofriam, experimentando a angústia de se verem desprezados pelos seus próprios
companheiros da raça branca, nos sertões ínvios e hostis. A alma simples dos
naturais se mostrava maleável aos seus ensinamentos. Aos seus apelos,
aproximavam-se dos núcleos de civilização. Aldeavam-se para uma vida ordeira
que os colonizadores destruíam com as suas taras infames e seculares. Anchieta
e quase todos os outros missionários das selvas brasileiras sustentaram
demoradas lutas, defendendo os indígenas fraternos. A verdade, porém, é que,
embora esfacelassem os púlpitos na pregação da piedade cristã, suas vozes se
perdiam na imensidade do Céu, sem que seus irmãos da terra as escutassem com a
ideia generosa de lhes praticar os carinhosos ensinos. Os primeiros brancos que
aportaram à América do Sul, na sua generalidade, não tinham em conta a
existência da lei nas extensas florestas do Novo Mundo.
Os portugueses prosseguiam, incessantemente, na faina ingrata de “descer
os índios”.
Regressando ao Além, os primeiros missionários da caravana luminosa de
Ismael pedem a sua colaboração misericordiosa, para que semelhante situação se
modifique. Mas o grande apóstolo de Jesus explica:
— Irmãos, não podemos tolher a liberdade dos nossos semelhantes. Não sou
indiferente a esses movimentos hediondos, nos quais os índios, simples e bons,
são capturados para os duros trabalhos do cativeiro. Esperemos no Senhor, cujo
coração misericordioso e augusto agasalhará todos aqueles que se encontram
famintos de justiça. Contudo, poderemos, com os nossos esforços, auxiliar os
encarnados na compreensão das leis fraternas, avisando-lhes o coração, de modo
indireto, quanto aos seus divinos deveres. Infelizmente, não encontramos, na
atualidade do planeta, outro povo que substitua os portugueses na grande obra
de edificação da Pátria do Evangelho. Todas as demais nações, como o próprio
Portugal, se encontram presas da cobiça, da inveja e da ambição. Os vícios de
todas as identificam perfeitamente umas com as outras, e no povo lusitano temos
de considerar a austera honradez aliada a grandes qualidades de valor e de sentimento,
que o habilitam, conforme a vontade do Senhor, a povoar os vastos latifúndios
que constituirão mais tarde o pouso abençoado da lição de Jesus. Colonizadores
desalmados estão em todos os países dos tempos modernos, que não reconhecem
outro direito a não ser o da força desumana e impiedosa. Recorrendo, pois, às
possibilidades ao nosso alcance, buscaremos, na Europa, um príncipe liberal,
trabalhador e justo, que não esteja subordinado à política romana, a fim de
caracterizar a nossa ação indireta. Traremos a sua personalidade de
administrador para a parte mais flagelada da nova pátria, a fim de que seus
exemplos possam servir aos que se encontram na direção das atividades sociais e
políticas da colônia e beneficiem, de maneira geral, a nação inteira. Ele virá
na qualidade de invasor, porquanto não encontramos outros recursos para a
adoção de providências dessa natureza; mas a sua permanência no Brasil será
curta e eventual, apenas durante os anos necessários a que suas lições sejam
prodigalizadas aos administradores da nova terra. Preliminarmente, porém,
devemos considerar que os seus companheiros não serão melhores que os
portugueses, no sentido da educação espiritual. A época é de profundo atraso de
quase todos os indivíduos e é para expelir essas trevas da consciência do mundo
que nos teremos de sacrificar nas atmosferas próximas da Terra, trabalhando
pela vitória do Senhor em todos os corações.
Os fatos se verificaram, consoante as afirmações do iluminado preposto
de Jesus.
Em 1624, a pretexto de sua guerra com a Espanha, os holandeses tomavam
de assalto a Bahia, sob o comando de Johan Van Dorth.[1]
Importa notar que as cenas dolorosas e lastimáveis, decorrentes da
invasão, não foram organizadas pelas abnegadas falanges do mundo invisível. As
causas profundas desses fatos residiam no estado evolutivo da época. Os
morticínios nas praças incendiadas e destruídas se verificavam, todos os dias,
entre inevitáveis atritos das raças chamadas a povoar aqueles recantos
desconhecidos.
Em 1637, entrava em Pernambuco o
general holandês João Maurício,[2] príncipe
de Nassau. Inumeráveis benefícios e imensos frutos produziu a sua administração
no norte[3] do
Brasil, que foi sempre a zona mais sacrificada do país.
O Recife se ostenta, diante da
Europa, como uma das mais belas cidades da América do Sul. Olinda é
reedificada. Uma assembleia de mecânicos, de pintores, de arquitetos e artistas
acompanha o príncipe de Nassau, enchendo a sua cidade de singulares
esplendores. Mas o espírito construtivo do administrador holandês não se
cristaliza nas expressões materiais da sua cidade predileta. O amor e o
respeito que vota à liberdade fazem-no venerado de todos os brasileiros e
portugueses de Pernambuco, cujas terras, naquela época, desciam até a região do
Paracatu, em Minas Gerais. Todos os escravos que procuram abrigo à sombra da sua
bandeira de tolerância ele os declara livres para sempre, e os índios
encontram, no seu coração, o apoio de um nobre e leal amigo. Maurício de Nassau
estabelece a liberdade religiosa e administra Pernambuco, inaugurando aí a
primeira liberal-democracia nas terras americanas, tais a justiça e a liberdade
com que se houve em seu governo.
Os Albuquerques e outros elementos em evidência no Norte muito
aprenderam com ele para as suas atividades do porvir.
A realidade, todavia, é que a lição de Nassau fora preparada no plano
invisível, para que os colonizadores da terra brasileira recebessem um novo
clarão no seu caminho rotineiro e obscuro.
Em socorro da nossa afirmativa, podemos invocar o testemunho da própria
História, porque, terminado o tempo necessário à sua administração no Brasil, o
grande príncipe holandês regressava à pátria, por imposição dos espíritos
avarentos, que militavam, nessa época da Companhia das Índias, na política
holandesa, sem que encontrassem substituto para a sua obra na América. Apesar
de suas frotas extraordinárias e poderosas, a Holanda retirou-se do Brasil sem
a intervenção de Portugal, bastando, para isso, o concurso dos habitantes da
colônia. Quando a questão ficou definitivamente resolvida na Corte de Haia, em
1661, os holandeses, embora a sua soberania marítima perdurasse até então, em
troca dos seus imensos trabalhos no norte do Brasil e dos milhões de florins[4]
aí abandonados, apenas receberam, a título de indenização, a importância de
cinco milhões de cruzados.
[2] N.E.: João Maurício de Nassau (1604–1679) – Militar holandês.
[3] N.E.: A divisão atual do país nas regiões N, NE, SE etc., veio mais
tarde. Antigamente fazia-se referência apenas às três grandes regiões, que só
mais tarde foram subdivididas: N, S e Central (esta abrangia as atuais SE e
CO).
[4] N.E.: Antiga moeda de ouro de Florença, Itália.
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