PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

domingo, fevereiro 09, 2014

Cristianismo e espiritismo - Léon Denis

Cristianismo e espiritismo
Léon Denis
Federação Espírita Brasileira  –  17ª edição
VI    -     Alteração do cristianismo.   Os dogmas

Como palhetas de ouro nas ondas turvas de um rio, a Igreja mescla, em seu ensino, a pura moral evangélica à vacuidade das próprias concepções.
Acabamos de ver que, depois da morte do Mestre, os primeiros cristãos possuíam, em sua correspondência com o mundo invisível, abundante fonte de inspirações. Utilizavam-na abertamente. Mas as instruções dos Espíritos nem sempre estavam em harmonia com as opiniões do sacerdócio nascente, que, se nessas relações achava um amparo, nelas muitas vezes encontrava também uma crítica severa e, às vezes, mesmo uma condenação.
Pode ver-se no livro do padre de Longueval57 como, à medida que se constitui a obra dogmática da Igreja, nos primeiros séculos, os Espíritos afastam-se pouco a pouco dos cristãos ortodoxos, para inspirar os que eram então designados sob o nome de heresiarcas.
Montânus, diz também o abade Fleury,58 tinha duas profetisas, duas senhoras nobres e ricas, chamadas Priscila e Maximila. Cerinthe também obtinha revelações.59 Apolônio de Tiana contava-se entre esses homens favorecidos pelo Céu, que são assistidos por um “espírito sobrenatural”.60 Quase todos os mestres da escola de Alexandria eram inspirados por gênios superiores.
Todos esses Espíritos, apoiando-se na opinião de S. Paulo: “o que por ora possuímos em conhecimento e profecia é muito imperfeito” (I Coríntios,13:9) — traziam, diziam eles, uma revelação que vinha confirmar e completar a de Jesus.
Desde o século III, afirmavam que os dogmas impostos pela Igreja, como um desafio à razão, não eram mais que um obscurecimento do pensamento do Cristo.
Combatiam o fausto já excessivo e escandaloso dos bispos, insurgindo-se energicamente contra o que a seus olhos era uma corrupção da moral.61
Essa oposição crescente tornava-se intolerável aos olhos da Igreja.
Os heresiarcas, aconselhados e dirigidos pelos Espíritos, entravam em luta aberta contra ela. Interpretavam o Evangelho com amplitude de vistas que a Igreja não podia admitir, sem cavar a ruína dos seus interesses materiais.
Quase todos se tornavam neoplatônicos, aceitando a sucessão das vidas do homem e o que Orígenes denominava “os castigos medicinais”, isto é, punições proporcionais às faltas da alma, reencarnada em novos corpos para resgatar o passado e purificar-se pela dor. Essa doutrina, ensinada pelos Espíritos, e cuja sanção Orígenes e muitos padres da Igreja, como vimos, encontravam nas Escrituras, era mais conforme com a justiça e misericórdia divinas. Deus não pode condenar as almas a suplícios eternos, depois de uma vida única, mas deve-lhes fornecer os meios de se elevarem mediante existências laboriosas e provas aceitas com resignação e suportadas com coragem.
Essa doutrina de esperança e de progresso não inspirava, aos olhos dos chefes da Igreja, o suficiente terror da morte e do pecado.
Não permitia firmar sobre bases convenientemente sólidas a autoridade do sacerdócio. O homem, podendo resgatar-se a si próprio das suas faltas, não necessitava do padre. O dom de profecia, a comunicação constante com os Espíritos, eram forças que, sem cessar, minavam o poder da Igreja. Esta, assustada, resolveu pôr termo à luta, sufocando o profetismo. Impôs silêncio a todos os que, invisíveis ou humanos, no intuito de espiritualizar o Cristianismo, afirmavam ideias cuja elevação a amedrontava.
Depois de ter, durante três séculos, reconhecido no dom de profecia, ou de mediunidade acessível a todos, conforme a promessa dos Apóstolos, um soberano meio de elucidar os problemas religiosos e fortificar a fé, a Igreja chegou a declarar que tudo o que provinha dessa fonte não era mais que pura ilusão ou obra do demônio. Ela se declarou, do alto da sua autoridade, a única profecia viva, a única revelação perpétua e permanente.
Tudo o que dela não provinha foi condenado, amaldiçoado. Todo esse lado grandioso do Evangelho, de que temos falado; toda a obra dos profetas que o completava e esclarecia, foi recalcado para a sombra. Não se tratou mais dos Espíritos nem da elevação dos seres na escala das existências e dos mundos, nem do resgate das faltas cometidas, nem de progressos efetuados e trabalhos realizados através do infinito dos espaços e do tempo.
Perderam-se de vista todos os ensinos; a tal ponto se esqueceu a verdadeira natureza dos dons de profecia que os modernos comentadores das Escrituras dizem que “a profecia era o dom de explicar aos fiéis os mistérios da religião”.62 Os profetas eram, a seu ver, “o bispo e o padre que julgavam, pelo dom do discernimento e as regras da Escritura, se o que fora dito provinha do espírito de Deus ou do espírito do demônio” — contradição absoluta com a opinião dos primeiros cristãos, que nos profetas viam inspirados, não de Deus mas dos Espíritos, como o diz João, na passagem de sua Primeira Epístola (4:1), já citada.
Um momento, ter-se-ia podido acreditar que, aliada aos descortinos profundos dos filósofos de Alexandria, a doutrina de Jesus ia prevalecer sobre as tendências do misticismo judeu-cristão e lançar a Humanidade na ampla via do progresso, à fonte das altas inspirações espirituais. Mas os homens desinteressados, que amavam a verdade pela verdade, não eram bastante numerosos nos concílios. Doutrinas que melhor se adaptavam aos interesses terrenos da Igreja foram elaboradas por essas célebres assembleias, que não cessaram de imobilizar e materializar a Religião. Graças a elas e sob a soberana influência dos pontífices romanos é que se elevou, através dos séculos, esse amálgama de dogmas estranhos, que nada têm de comum com o Evangelho e lhe são muitíssimo posteriores — sombrio edifício em que o pensamento humano, semelhante a uma águia engaiolada, impotente para desdobrar as asas e não vendo mais que uma nesga do céu, foi encerrado durante tanto tempo como em uma catacumba.
Essa pesada construção, que obstrui o caminho à Humanidade, surgiu na Terra em 325 com o concílio de Niceia, e foi concluída em 1870 com o último concílio de Roma. Tem por alicerce o pecado original e por coroamento a Imaculada Conceição e a infalibilidade papal.
É por essa obra monstruosa que o homem aprende a conhecer esse Deus implacável e vingativo, esse inferno sempre hiante, esse paraíso fechado a tantas almas valorosas, a tantas generosas inteligências, e facilmente alcançado por uma vida de alguns dias, terminada após o batismo — concepções que têm impelido tantos seres humanos ao ateísmo e ao desespero.

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57 História da Igreja Galicana, t. I, p. 84.
58 Hist. eclesiástica, liv. IV, 6.
59 Ibid., liv. II, 3.
60 História eclesiástica, liv. I, 9.
61 Padre de Longueval, História da Igreja galicana, t. I, p. 84.
62 De Maistre de Sacy, Comentários sobre São Paulo, I, 3, 22, 29.

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