Cristianismo e espiritismo
Léon Denis
Federação Espírita Brasileira
– 17ª edição
VI - Alteração do cristianismo. Os dogmas
Como
palhetas de ouro nas ondas turvas de um rio, a Igreja mescla, em seu ensino, a
pura moral evangélica à vacuidade das próprias concepções.
Acabamos
de ver que, depois da morte do Mestre, os primeiros cristãos possuíam, em sua
correspondência com o mundo invisível, abundante fonte de inspirações.
Utilizavam-na abertamente. Mas as instruções dos Espíritos nem sempre estavam
em harmonia com as opiniões do sacerdócio nascente, que, se nessas relações
achava um amparo, nelas muitas vezes encontrava também uma crítica severa e, às
vezes, mesmo uma condenação.
Pode
ver-se no livro do padre de Longueval57
como, à medida que se constitui a obra dogmática da Igreja, nos primeiros
séculos, os Espíritos afastam-se pouco a pouco dos cristãos ortodoxos, para
inspirar os que eram então designados sob o nome de heresiarcas.
Montânus,
diz também o abade Fleury,58 tinha
duas profetisas, duas senhoras nobres e ricas, chamadas Priscila e Maximila.
Cerinthe também obtinha revelações.59 Apolônio
de Tiana contava-se entre esses homens favorecidos pelo Céu, que são assistidos
por um “espírito sobrenatural”.60 Quase todos os mestres da escola de
Alexandria eram inspirados por gênios
superiores.
Todos esses
Espíritos, apoiando-se na opinião de S. Paulo: “o que por ora possuímos em
conhecimento e profecia é muito imperfeito” (I Coríntios,13:9) — traziam,
diziam eles, uma revelação que vinha confirmar e completar a de Jesus.
Desde o século
III, afirmavam que os dogmas impostos pela Igreja, como um desafio à razão, não
eram mais que um obscurecimento do pensamento do Cristo.
Combatiam o
fausto já excessivo e escandaloso dos bispos, insurgindo-se energicamente
contra o que a seus olhos era uma corrupção da moral.61
Essa oposição
crescente tornava-se intolerável aos olhos da Igreja.
Os heresiarcas,
aconselhados e dirigidos pelos Espíritos, entravam em luta aberta contra ela.
Interpretavam o Evangelho com amplitude de vistas que a Igreja não podia
admitir, sem cavar a ruína dos seus interesses materiais.
Quase todos se
tornavam neoplatônicos, aceitando a sucessão das vidas do homem e o que
Orígenes denominava “os castigos medicinais”, isto é, punições proporcionais às
faltas da alma, reencarnada em novos corpos para resgatar o passado e
purificar-se pela dor. Essa doutrina, ensinada pelos Espíritos, e cuja sanção
Orígenes e muitos padres da Igreja, como vimos, encontravam nas Escrituras, era
mais conforme com a justiça e misericórdia divinas. Deus não pode condenar as
almas a suplícios eternos, depois de uma vida única, mas deve-lhes fornecer os
meios de se elevarem mediante existências laboriosas e provas aceitas com
resignação e suportadas com coragem.
Essa doutrina de
esperança e de progresso não inspirava, aos olhos dos chefes da Igreja, o
suficiente terror da morte e do pecado.
Não permitia
firmar sobre bases convenientemente sólidas a autoridade do sacerdócio. O
homem, podendo resgatar-se a si próprio das suas faltas, não necessitava do
padre. O dom de profecia, a comunicação constante com os Espíritos, eram forças
que, sem cessar, minavam o poder da Igreja. Esta, assustada, resolveu pôr termo
à luta, sufocando o profetismo.
Impôs silêncio a todos os que, invisíveis ou humanos, no intuito de espiritualizar
o Cristianismo, afirmavam ideias cuja elevação a amedrontava.
Depois de ter,
durante três séculos, reconhecido no dom de profecia, ou de mediunidade
acessível a todos, conforme a promessa dos Apóstolos, um soberano meio de
elucidar os problemas religiosos e fortificar a fé, a Igreja chegou a declarar
que tudo o que provinha dessa fonte não era mais que pura ilusão ou obra do
demônio. Ela se declarou, do alto da sua autoridade, a única profecia viva, a
única revelação perpétua e permanente.
Tudo o que dela
não provinha foi condenado, amaldiçoado. Todo esse lado grandioso do Evangelho,
de que temos falado; toda a obra dos profetas que o completava e esclarecia,
foi recalcado para a sombra. Não se tratou mais dos Espíritos nem da elevação
dos seres na escala das existências e dos mundos, nem do resgate das faltas
cometidas, nem de progressos efetuados e trabalhos realizados através do
infinito dos espaços e do tempo.
Perderam-se de
vista todos os ensinos; a tal ponto se esqueceu a verdadeira natureza dos dons
de profecia que os modernos comentadores das Escrituras dizem que “a profecia
era o dom de explicar aos fiéis os mistérios da religião”.62
Os profetas eram, a seu ver, “o bispo e o padre que julgavam, pelo dom do
discernimento e as regras da Escritura, se o que fora dito provinha do espírito
de Deus ou do espírito do demônio” — contradição absoluta com a opinião dos
primeiros cristãos, que nos profetas viam inspirados, não de Deus mas dos
Espíritos, como o diz João, na passagem de sua Primeira Epístola (4:1),
já citada.
Um momento,
ter-se-ia podido acreditar que, aliada aos descortinos profundos dos filósofos
de Alexandria, a doutrina de Jesus ia prevalecer sobre as tendências do
misticismo judeu-cristão e lançar a Humanidade na ampla via do progresso, à
fonte das altas inspirações espirituais. Mas os homens desinteressados, que
amavam a verdade pela verdade, não eram bastante numerosos nos concílios.
Doutrinas que melhor se adaptavam aos interesses terrenos da Igreja foram
elaboradas por essas célebres assembleias, que não cessaram de imobilizar e
materializar a Religião. Graças a elas e sob a soberana influência dos
pontífices romanos é que se elevou, através dos séculos, esse amálgama de
dogmas estranhos, que nada têm de comum com o Evangelho e lhe são muitíssimo
posteriores — sombrio edifício em que o pensamento humano, semelhante a uma
águia engaiolada, impotente para desdobrar as asas e não vendo mais que uma
nesga do céu, foi encerrado durante tanto tempo como em uma catacumba.
Essa pesada
construção, que obstrui o caminho à Humanidade, surgiu na Terra em 325 com o
concílio de Niceia, e foi concluída em 1870 com o último concílio de Roma. Tem
por alicerce o pecado original e por coroamento a Imaculada Conceição e a
infalibilidade papal.
É por essa obra
monstruosa que o homem aprende a conhecer esse Deus implacável e vingativo,
esse inferno sempre hiante, esse paraíso fechado a tantas almas valorosas, a
tantas generosas inteligências, e facilmente alcançado por uma vida de alguns dias,
terminada após o batismo — concepções que têm impelido tantos seres humanos ao ateísmo
e ao desespero.
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