PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

CRISTIANISMO E ESPIRITISMO - LÉON DENIS

CRISTIANISMO E ESPIRITISMO
LÉON DENIS
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA   –    17ª EDIÇÃO 
TRECHO   DO  IV   –   A   DOUTRINA   SECRETA

            A lei da reencarnação acha-se indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.
            Em sua conversação com Nicodemos, Jesus assim se exprime:

Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o Reino de Deus. Disse-  
lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo já velho? Jesus respondeu: Em verdade te
digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O
que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te
dizer: importa-vos nascer outra vez.
O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai.
Assim é todo aquele que é nascido do espírito (João, 3:3 a 8).

            Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”.
            O que demonstra que não se tratava do batismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reencarnação já ensinada no Zohar, livro sagrado dos hebreus.15
            Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe novo corpo, nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.
            Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemento frutificador. Quanto à expressão Espírito Santo, que se acha no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra santo nele não se encontra em sua origem e que foi aí introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos.16 É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.
            Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus: “Mestre, quem foi que pecou?
Foi este homem, ou seu pai, ou sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, 9:2).
            A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação. Em seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da consequência dos atos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência anterior.
            Daí essa ideia da penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; retificai vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de haverdes pago até o último ceitil. (Mateus, 5:26).
            Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que não pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de Amsterdam não pôde sair-se da dificuldade senão com esta declaração: o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe.17
            Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na pessoa de João Batista. Jesus o afirma nestes termos, dirigindo-se à multidão: “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro, e mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. O que tem ouvidos para ouvir, ouça” (Mateus, 11:9, 14 e 15).
            Mais tarde, depois da decapitação de João Batista, ele o repete aos discípulos:

E seus discípulos o interrogam, dizendo: “Por que, pois, dizem os escribas que importa vir
primeiramente Elias?”. Ele, respondendo, lhes disse: “Elias, certamente, devia vir e restabelecer
todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto
quiseram”. Então, conheceram seus discípulos que de João Batista é que ele lhes falara (Mateus,
17:10 a 13).

         Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Batista eram a mesma e única individualidade. Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante fato não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.
            Numa circunstância memorável, Jesus pergunta a seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”.
            E eles lhe respondem: “Uns dizem: é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas” (Mateus, 16:13, 14; Marcos, 8:28).
            Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se acha implicitamente contida nestas palavras memoráveis:
“Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”. Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma única existência?
            De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.
            Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:

Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode
contribuir para vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se vos
escrevesse relativamente
às coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se acham expostas em parábolas (Epístola
católica de São Barnabé, XVII).

         Em observância a esta regra é que um discípulo de São Paulo, Hermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na construção de um edifício espiritual:

Por que foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura
dessa torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? Era necessário, diz-me o senhor, que,
antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não poderiam entrar
no Reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira
vida. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

          Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as águas18 são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste.
Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e divulgada entre os cristãos.
            Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerônimo o considera, “depois dos Apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade, diz ele, que só a ignorância poderia negar”.
S. Jerônimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerônimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.
        Em seu livro célebre, Dos princípios, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, em uma palavra, na sucessão das vidas, o corretivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parecem reinar no mundo, se não se admite mais que uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do
espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.
            Errônea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral, e da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedônia, e mais tarde pelo quinto concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes,19 reconhecemos que esses concílios repeliram não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.
            Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma jamais foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro, e é esse um ponto que se faz preciso estabelecer.
            Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos acha-se indicada no Evangelho, em forma de parábola: “Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos, o lugar, e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também” (João, 14:2 e 3).
            A casa do Pai é o infinito Céu; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que mesquinho e obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar, conforme os nossos méritos.
            Orígenes comenta essas palavras em termos positivos: “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos atuais e se tiverem revestido de outros novos”.





15 Ver nota complementar no 5.
16 Ver Bellemare, Espírita e cristão, p. 351 e seguintes.
17 Ver nota complementar no 5.
18 Essa parábola adquire maior relevo pelo fato de ser a água, para os judeus cabalistas, a representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
19 Ver Pezzani. A pluralidade das existências, p. 187 e 190.

Nenhum comentário: