CRISTIANISMO
E ESPIRITISMO
LÉON
DENIS
FEDERAÇÃO
ESPÍRITA BRASILEIRA – 17ª EDIÇÃO
TRECHO DO
IV – A
DOUTRINA SECRETA
A lei da reencarnação acha-se
indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois
aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de
aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.
Em sua conversação com Nicodemos,
Jesus assim se exprime:
Em
verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o Reino de
Deus. Disse-
lhe
Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo já velho? Jesus respondeu: Em
verdade te
digo
que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no Reino de
Deus. O
que
é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito é espírito. Não te
maravilhes de te
dizer:
importa-vos nascer outra vez.
O
vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para
onde vai.
Assim
é todo aquele que é nascido do espírito (João, 3:3 a 8).
Jesus acrescenta estas palavras
significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”.
O que demonstra que não se tratava
do batismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da
reencarnação já ensinada no Zohar, livro sagrado dos hebreus.15
Esse vento, ou esse
espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe novo corpo, nova
morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É
a única explicação satisfatória.
Na Cabala hebraica, a água era
a matéria primordial, o elemento frutificador. Quanto à expressão Espírito
Santo, que se acha no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar
que a palavra santo nele não se encontra em sua origem e que foi aí
introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos.16 É preciso, por conseguinte, ler: renascer
da matéria e do espírito.
Noutra ocasião, a propósito de um
cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:
“Mestre, quem foi que pecou?
Foi este homem,
ou seu pai, ou sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, 9:2).
A pergunta indica, antes de tudo,
que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação. Em seu
pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a
lei da consequência dos atos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de
um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência
anterior.
Daí essa ideia da penitência, que
reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas
constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova
existência; retificai vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do
domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de haverdes pago
até o último ceitil. (Mateus, 5:26).
Em vão têm procurado os teólogos
explicar doutro modo, que não pela reencarnação, essa passagem do Evangelho.
Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de
Amsterdam não pôde sair-se da dificuldade senão com esta declaração: o cego
de nascença havia pecado no seio de sua mãe.17
Era também opinião corrente, nessa
época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar,
concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra
na pessoa de João Batista. Jesus o afirma nestes termos, dirigindo-se à
multidão: “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro, e mais que um
profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. O
que tem ouvidos para ouvir, ouça” (Mateus, 11:9, 14 e 15).
Mais tarde, depois da decapitação de
João Batista, ele o repete aos discípulos:
E
seus discípulos o interrogam, dizendo: “Por que, pois, dizem os escribas que
importa vir
primeiramente
Elias?”. Ele, respondendo, lhes disse: “Elias, certamente, devia vir e
restabelecer
todas
as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe
fizeram quanto
quiseram”.
Então, conheceram seus discípulos que de João Batista é que ele lhes falara
(Mateus,
17:10
a 13).
Assim, para Jesus, como para os
discípulos, Elias e João Batista eram a mesma e única individualidade. Ora,
tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante
fato não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.
Numa circunstância memorável, Jesus
pergunta a seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”.
E eles lhe respondem: “Uns dizem: é
João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas” (Mateus,
16:13, 14; Marcos, 8:28).
Jesus não protesta contra essa
opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de
nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a
percorrer para se elevar à perfeição, não se acha implicitamente contida nestas
palavras memoráveis:
“Sede perfeitos
como vosso Pai celeste é perfeito”. Como poderia a alma humana alcançar esse
estado de perfeição em uma única existência?
De novo encontramos a doutrina
secreta, dissimulada sob véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos
e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar
abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.
Aos primeiros fiéis escrevia
Barnabé:
Tanto
quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do
que pode
contribuir
para vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque,
se vos
escrevesse
relativamente
às
coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se acham expostas em parábolas
(Epístola
católica
de São Barnabé, XVII).
Em observância a esta regra é que um
discípulo de São Paulo, Hermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura
de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na
construção de um edifício espiritual:
Por
que foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na
estrutura
dessa
torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? Era necessário, diz-me o
senhor, que,
antes
de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não
poderiam entrar
no
Reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua
primeira
vida.
(Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).
Evidentemente essas pedras são as
almas dos homens; as águas18 são as
regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante
as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de
tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste.
Há nisso um
símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e
divulgada entre os cristãos.
Dentre os padres da Igreja, Orígenes
é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das
existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerônimo o considera, “depois
dos Apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade, diz ele, que só a ignorância
poderia negar”.
S. Jerônimo vota
tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele
foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerônimo, pudesse ter a sua
profunda ciência das Escrituras.
Em seu livro célebre, Dos
princípios, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram,
na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, em uma palavra, na
sucessão das vidas, o corretivo necessário à aparente desigualdade das
condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que
parecem reinar no mundo, se não se admite mais que uma única existência
terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que
a união do
espírito ao
corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das
almas e a laboriosa realização do progresso.
Errônea opinião se introduziu em
muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral, e da
pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas,
primeiro pelo concílio de Calcedônia, e mais tarde pelo quinto concílio de
Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes,19
reconhecemos que esses concílios repeliram não a crença na pluralidade das
existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava
Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o
ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.
Na realidade, a questão da
pluralidade das existências da alma jamais foi resolvida pelos concílios.
Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro, e é esse um ponto que se
faz preciso estabelecer.
Como a lei dos renascimentos, a
pluralidade dos mundos acha-se indicada no Evangelho, em forma de parábola: “Há
muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos, o lugar, e, depois
que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a
fim de que onde eu estiver, vós estejais também” (João, 14:2 e 3).
A casa do Pai é o infinito Céu; as
moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé
das quais a nossa pobre Terra não é mais que mesquinho e obscuro planeta. É
para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua
doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar,
conforme os nossos méritos.
Orígenes comenta essas palavras em
termos positivos: “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as
almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos atuais e se
tiverem revestido de outros novos”.
15 Ver nota
complementar no 5.
16
Ver Bellemare, Espírita e cristão, p. 351 e seguintes.
17
Ver nota complementar no 5.
18 Essa parábola
adquire maior relevo pelo fato de ser a água, para os judeus cabalistas, a
representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter
cósmico.
19
Ver Pezzani. A pluralidade das existências, p. 187 e 190.
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