O PROBLEMA DO SER, DO DESTINO E DA DOR
LÉON DENIS
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA – 32ª
EDIÇÃO
TRECHO DO XXVI
A DOR
É
necessário sofrer para adquirir e conquistar. Os atos de sacrifício aumentam as
radiações psíquicas. Há como que uma esteira luminosa que segue, no Espaço, os
Espíritos dos heróis e dos mártires.
Aqueles
que não sofreram, mal podem compreender estas coisas, porque, neles, só a
superfície do ser está arroteada, valorizada. Há falta de largueza em seus
corações, de efusão em seus sentimentos; seu pensamento abrange horizontes
acanhados. São necessários os infortúnios e as angústias para dar à alma seu
aveludado, sua beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A vida
dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos melhores. A
forma, como o coração, tudo se embeleza por ter sofrido. Há, já nesta vida, um
não sei quê de grave e enternecido nos rostos que as lágrimas sulcaram muitas
vezes. Tomam uma expressão de beleza austera, uma espécie de majestade que
impressiona e seduz.
Michelangelo
adotara como norma de proceder os preceitos seguintes: “Concentra-te e faze
como o escultor faz à obra que quer aformosear. Tira o supérfluo, aclara o
obscuro, difunde a luz por tudo e não largues o cinzel”.
Máxima
sublime, que contém o princípio de todo o aperfeiçoamento íntimo. Nossa alma é
nossa obra, com efeito, obra capital e fecunda, que sobrepuja em grandeza todas
as manifestações parciais da Arte, da Ciência, do gênio.
Todavia,
as dificuldades de execução são correlativas ao esplendor do objetivo e, diante
da penosa tarefa da reforma interior, do combate incessante travado com as
paixões, com a matéria, quantas vezes o artista não desanima? Quantas vezes não
abandona o cinzel? É então que Deus lhe envia um auxílio — a dor! Ela cava
ousadamente nas profundezas da consciência a que o trabalhador hesitante e
inábil não podia ou não sabia chegar;
desobstrui-lhe recessos, modela-lhe os contornos; elimina ou destrói o que era
inútil ou ruim e, do mármore frio, informe, sem beleza da estátua feia e
grosseira, que nossas mãos mal tinham esboçado, faz surgir com o tempo a
estátua viva, a obra-prima incomparável, as formas harmoniosas e suaves da
divina Psiquê.
* * *
A
dor não fere somente os culpados. Em nosso mundo, o homem honrado sofre tanto
como o mau, o que é explicável. Em primeiro lugar, a alma virtuosa é mais
sensível por ser mais adiantado o seu grau de evolução; depois, estima muitas
vezes e procura a dor, por lhe conhecer todo o valor.
Há
dessas almas que só vêm a este mundo para dar o exemplo da grandeza no
sofrimento; são, por sua vez, missionários e sua missão não é menos bela e
comovedora que a dos grandes reveladores. Encontram-se em todos os tempos e
ocupam todos os planos da vida; estão em pé nos cimos resplandecentes da
História, e, para encontrá-las, é preciso ir procurá-las no meio da multidão
onde se acham, escondidas e humildes.
Admiramos
o Cristo, Sócrates, Antígono, Joana d’Arc; mas quantas vítimas obscuras do
dever ou do amor caem todos os dias e ficam sepultadas no silêncio e no
esquecimento! Entretanto, não são perdidos seus exemplos; eles iluminam toda a
vida dos poucos homens que os presenciaram.
Para
que uma vida seja completa e fecunda, não é necessário que nela superabundem os
grandes atos de sacrifício, nem que a remate uma morte que a sagre aos olhos de
todos. Tal existência, aparentemente apagada e triste, indistinta e
despercebida, é, na realidade, um esforço contínuo, uma luta de todos os
instantes contra a desgraça e o sofrimento. Não somos juízes de tudo o que se
passa no recôndido das almas; muitas, por pudor, escondem chagas dolorosas,
males cruéis, que as tornariam tão interessantes aos nossos olhos como os
mártires mais célebres. Fá-las também grandes e heroicas, a essas almas, o
combate ininterrupto que pelejam contra o destino!
Seus
triunfos ficam ignorados, mas todos os tesouros de energia, de paixão generosa,
de paciência ou amor, que elas acumulam nesse esforço de cada dia,
constituir-lhes-ão um capital de força, de beleza moral que pode, no Além,
fazê-las iguais às mais nobres figuras da História.
Na
oficina augusta, onde se forjam as almas, não são suficientes o gênio e a
glória para fazê-las verdadeiramente formosas. Para dar-lhes o último traço
sublime tem sido sempre necessária a dor. Se certas existências se tornaram, de
obscuras que eram, tão santas e sagradas como dedicações célebres, é que nelas
foi contínuo o sofrimento. Não foi somente uma vez, em tal circunstância ou na
hora da morte, que a dor as elevou acima de si mesmas e as apresentou à
admiração dos séculos; foi por toda a sua vida ter
sido
uma imolação constante.
E
esta obra de longo aperfeiçoamento, este lento desfilar das horas dolorosas,
esta afinação misteriosa dos seres que se preparam, assim, para as derradeiras
ascensões, força a admiração dos próprios Espíritos. É esse espetáculo comovedor
que lhes inspira a vontade de renascerem entre nós, a fim de sofrerem e
morrerem outra vez por tudo que é grande, por tudo o que amam e para, com este
novo sacrifício, tornarem mais vivo o próprio brilho.
* * *
Feitas
estas considerações de ordem geral, retomemos a questão nos seus elementos
primários.
A
dor física é, em geral, um aviso da Natureza, que procura preservar-nos dos
excessos. Sem ela, abusaríamos de nossos órgãos até o ponto de os destruirmos
antes do tempo. Quando um mal perigoso se vai insinuando em nós, que
aconteceria se não lhe sentíssemos logo os efeitos desagradáveis?
Iria
cada vez lavrando mais, invadir-nos-ia e secaria em nós as fontes da vida.
Ainda
quando, persistindo em desconhecer os avisos repetidos da Natureza, deixamos a
doença desenvolver-se em nós, pode ela ser um benefício, se, causada por nossos
abusos e vícios, nos ensinar a detestá-los e a corrigir-nos deles. É necessário
sofrer para nos conhecermos e conhecermos bem a vida.
Epicteto,
que gostamos de citar, dizia também: “É falso dizer-se que a saúde é um bem e a
doença um mal. Usar bem da saúde é um bem; usar mal é um mal. De tudo se tira o
bem, até da própria morte”.
Às
almas fracas, a doença ensina a paciência, a sabedoria, o governo de si mesmas.
Às almas fortes pode oferecer compensações de ideal, deixando ao Espírito o
livre voo de suas aspirações até ao ponto de esquecer os sofrimentos físicos.
A
ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é para os
indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os primeiros agrupamentos
humanos? Não foi a ameaça das feras, da fome, dos flagelos que obrigou o indivíduo a procurar seu
semelhante para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos comuns, da
inteligência e labor comuns que saiu toda a civilização, com suas artes, ciências
e indústrias!
A
dor física, pode-se também dizer, resulta da desproporção entre nossa fraqueza corporal
e a totalidade das forças que nos cercam, forças colossais e fecundas, que são
outras tantas manifestações da vida universal.
Apenas
podemos assimilar ínfima parte delas, mas, atuando sobre nós, elas trabalham
por aumentar, por alargar incessantemente a esfera de nossa atividade e a gama
de nossas sensações. Sua ação sobre o corpo orgânico repercute na forma
fluídica; contribui para enriquecê-la, dilatá-la, torná-la mais impressionável,
numa palavra, apta para novos aperfeiçoamentos.
O
sofrimento, por sua ação química, tem sempre um resultado útil, mas esse
resultado varia infinitamente segundo os indivíduos e seu estado de
adiantamento. Apurando o nosso invólucro material, dá mais força ao ser
interior, mais facilidade para se desapegar das coisas terrenas. Em outros, mais
adiantados no seu grau de evolução, atuará no sentido moral.
A
dor é como uma asa dada à alma escravizada pela carne para ajudá-la a desprender-se
e a elevar-se mais alto.
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