PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

quinta-feira, janeiro 30, 2014

O PROBLEMA DO SER, DO DESTINO E DA DOR - XXVI - A DOR

O PROBLEMA DO SER, DO DESTINO E DA DOR
LÉON DENIS
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA  –  32ª EDIÇÃO
TRECHO   DO   XXVI   
A  DOR

É necessário sofrer para adquirir e conquistar. Os atos de sacrifício aumentam as radiações psíquicas. Há como que uma esteira luminosa que segue, no Espaço, os Espíritos dos heróis e dos mártires.
Aqueles que não sofreram, mal podem compreender estas coisas, porque, neles, só a superfície do ser está arroteada, valorizada. Há falta de largueza em seus corações, de efusão em seus sentimentos; seu pensamento abrange horizontes acanhados. São necessários os infortúnios e as angústias para dar à alma seu aveludado, sua beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A vida dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos melhores. A forma, como o coração, tudo se embeleza por ter sofrido. Há, já nesta vida, um não sei quê de grave e enternecido nos rostos que as lágrimas sulcaram muitas vezes. Tomam uma expressão de beleza austera, uma espécie de majestade que impressiona e seduz.
Michelangelo adotara como norma de proceder os preceitos seguintes: “Concentra-te e faze como o escultor faz à obra que quer aformosear. Tira o supérfluo, aclara o obscuro, difunde a luz por tudo e não largues o cinzel”.
Máxima sublime, que contém o princípio de todo o aperfeiçoamento íntimo. Nossa alma é nossa obra, com efeito, obra capital e fecunda, que sobrepuja em grandeza todas as manifestações parciais da Arte, da Ciência, do gênio.
Todavia, as dificuldades de execução são correlativas ao esplendor do objetivo e, diante da penosa tarefa da reforma interior, do combate incessante travado com as paixões, com a matéria, quantas vezes o artista não desanima? Quantas vezes não abandona o cinzel? É então que Deus lhe envia um auxílio — a dor! Ela cava ousadamente nas profundezas da consciência a que o trabalhador hesitante e inábil não podia ou não  sabia chegar; desobstrui-lhe recessos, modela-lhe os contornos; elimina ou destrói o que era inútil ou ruim e, do mármore frio, informe, sem beleza da estátua feia e grosseira, que nossas mãos mal tinham esboçado, faz surgir com o tempo a estátua viva, a obra-prima incomparável, as formas harmoniosas e suaves da divina Psiquê.
* * *
A dor não fere somente os culpados. Em nosso mundo, o homem honrado sofre tanto como o mau, o que é explicável. Em primeiro lugar, a alma virtuosa é mais sensível por ser mais adiantado o seu grau de evolução; depois, estima muitas vezes e procura a dor, por lhe conhecer todo o valor.
Há dessas almas que só vêm a este mundo para dar o exemplo da grandeza no sofrimento; são, por sua vez, missionários e sua missão não é menos bela e comovedora que a dos grandes reveladores. Encontram-se em todos os tempos e ocupam todos os planos da vida; estão em pé nos cimos resplandecentes da História, e, para encontrá-las, é preciso ir procurá-las no meio da multidão onde se acham, escondidas e humildes.
Admiramos o Cristo, Sócrates, Antígono, Joana d’Arc; mas quantas vítimas obscuras do dever ou do amor caem todos os dias e ficam sepultadas no silêncio e no esquecimento! Entretanto, não são perdidos seus exemplos; eles iluminam toda a vida dos poucos homens que os presenciaram.
Para que uma vida seja completa e fecunda, não é necessário que nela superabundem os grandes atos de sacrifício, nem que a remate uma morte que a sagre aos olhos de todos. Tal existência, aparentemente apagada e triste, indistinta e despercebida, é, na realidade, um esforço contínuo, uma luta de todos os instantes contra a desgraça e o sofrimento. Não somos juízes de tudo o que se passa no recôndido das almas; muitas, por pudor, escondem chagas dolorosas, males cruéis, que as tornariam tão interessantes aos nossos olhos como os mártires mais célebres. Fá-las também grandes e heroicas, a essas almas, o combate ininterrupto que pelejam contra o destino!
Seus triunfos ficam ignorados, mas todos os tesouros de energia, de paixão generosa, de paciência ou amor, que elas acumulam nesse esforço de cada dia, constituir-lhes-ão um capital de força, de beleza moral que pode, no Além, fazê-las iguais às mais nobres figuras da História.
Na oficina augusta, onde se forjam as almas, não são suficientes o gênio e a glória para fazê-las verdadeiramente formosas. Para dar-lhes o último traço sublime tem sido sempre necessária a dor. Se certas existências se tornaram, de obscuras que eram, tão santas e sagradas como dedicações célebres, é que nelas foi contínuo o sofrimento. Não foi somente uma vez, em tal circunstância ou na hora da morte, que a dor as elevou acima de si mesmas e as apresentou à admiração dos séculos; foi por toda a sua vida ter
sido uma imolação constante.
E esta obra de longo aperfeiçoamento, este lento desfilar das horas dolorosas, esta afinação misteriosa dos seres que se preparam, assim, para as derradeiras ascensões, força a admiração dos próprios Espíritos. É esse espetáculo comovedor que lhes inspira a vontade de renascerem entre nós, a fim de sofrerem e morrerem outra vez por tudo que é grande, por tudo o que amam e para, com este novo sacrifício, tornarem mais vivo o próprio brilho.
* * *
Feitas estas considerações de ordem geral, retomemos a questão nos seus elementos primários.
A dor física é, em geral, um aviso da Natureza, que procura preservar-nos dos excessos. Sem ela, abusaríamos de nossos órgãos até o ponto de os destruirmos antes do tempo. Quando um mal perigoso se vai insinuando em nós, que aconteceria se não lhe sentíssemos logo os efeitos desagradáveis?
Iria cada vez lavrando mais, invadir-nos-ia e secaria em nós as fontes da vida.
Ainda quando, persistindo em desconhecer os avisos repetidos da Natureza, deixamos a doença desenvolver-se em nós, pode ela ser um benefício, se, causada por nossos abusos e vícios, nos ensinar a detestá-los e a corrigir-nos deles. É necessário sofrer para nos conhecermos e conhecermos bem a vida.
Epicteto, que gostamos de citar, dizia também: “É falso dizer-se que a saúde é um bem e a doença um mal. Usar bem da saúde é um bem; usar mal é um mal. De tudo se tira o bem, até da própria morte”.
Às almas fracas, a doença ensina a paciência, a sabedoria, o governo de si mesmas. Às almas fortes pode oferecer compensações de ideal, deixando ao Espírito o livre voo de suas aspirações até ao ponto de esquecer os sofrimentos físicos.
A ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é para os indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os primeiros agrupamentos humanos? Não foi a ameaça das feras, da fome, dos flagelos  que obrigou o indivíduo a procurar seu semelhante para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos comuns, da inteligência e labor comuns que saiu toda a civilização, com suas artes, ciências e indústrias!
A dor física, pode-se também dizer, resulta da desproporção entre nossa fraqueza corporal e a totalidade das forças que nos cercam, forças colossais e fecundas, que são outras tantas manifestações da vida universal.
Apenas podemos assimilar ínfima parte delas, mas, atuando sobre nós, elas trabalham por aumentar, por alargar incessantemente a esfera de nossa atividade e a gama de nossas sensações. Sua ação sobre o corpo orgânico repercute na forma fluídica; contribui para enriquecê-la, dilatá-la, torná-la mais impressionável, numa palavra, apta para novos aperfeiçoamentos.
O sofrimento, por sua ação química, tem sempre um resultado útil, mas esse resultado varia infinitamente segundo os indivíduos e seu estado de adiantamento. Apurando o nosso invólucro material, dá mais força ao ser interior, mais facilidade para se desapegar das coisas terrenas. Em outros, mais adiantados no seu grau de evolução, atuará no sentido moral.

A dor é como uma asa dada à alma escravizada pela carne para ajudá-la a desprender-se e a elevar-se mais alto.

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