Em abril de 2017, o mundo, e
especialmente o Brasil, comemora os 160 anos de um dos livros mais controversos
e polêmicos já editados: O Livro dos Espíritos, codificado pelo francês Alan
Kardec, pseudônimo do educador Hippolyte Léon Denizard Rivail, que nasceu em
Lyon, em 1804, e morreu em Paris, em 1869. Discípulo de Pestalozzi, foi um dos
pioneiros na pesquisa científica de fenômenos paranormais e é considerado o pai
do espiritismo.
Mesmo
quem não acredita em vida após a morte ou em comunicação com os espíritos
certamente tem acompanhado a crescente expansão do movimento espírita no
Brasil. O aumento no número de produções de TV e cinema de temática
espiritualista leva milhões de brasileiros a tratar do assunto, especialmente
ao acompanharem novelas e películas de sucesso. Este ano, já estão marcados os
lançamentos de filmes sobre as vidas de Alan Kardec e de Jesus Cristo, este
último com história contada sob a perspectiva espírita. Sem falar em centenas
de programas no YouTube e páginas no Facebook que tratam da doutrina codificada
por Kardec. Mais antiga, a literatura espírita é tão vasta que apenas Chico
Xavier psicografou mais de 400 obras, lidas por milhões de pessoas mundo afora
desde a década de 40. Em paralelo, começamos a ter notícias de pesquisas em
centros renomados nacionais e estrangeiros a respeito de experiências de quase
morte, psicografia e desdobramento durante o sono.
Maior
país espírita do mundo, o Brasil tem hoje, segundo o IBGE, 4 milhões de
praticantes e 30 milhões de simpatizantes do espiritismo. No momento em que o
número de seguidores de Alan Kardec cresce no país, em que preconceitos e medos
acerca do universo dos espíritos vão aos poucos se diluindo, é preciso
aprofundar o conteúdo moral da obra, a despeito do grande apelo que os fenômenos
mediúnicos têm sobre os que buscam no espiritismo alento para dramas como a
perda de familiares e a cura de doenças físicas e emocionais. Apesar de a obra
ser um verdadeiro tratado sobre o funcionamento do mundo espiritual, o que na
verdade O Livro dos Espíritos propõe é uma revolução na conduta e nas relações
humanas. Neste sentido, ele é um guia certeiro para todos os que escolhem se
tornar pessoas melhores, cidadãos do bem, decididos a contribuir para um mundo
mais pacífico e ético.
É
fundamentalmente sobre. moral, ética, justiça, amor e perdão, abordados de
maneira lógica e racional, que os espíritos que responderam às 1019 perguntas
feitas por Kardec falam em seu Livro. Das cinco obras fundamentais que compõem
a Codificação do Espiritismo, esta foi a primeira, o marco inicial da doutrina
que acabou por trazer uma profunda repercussão no pensamento e na visão de vida
de considerável parcela da humanidade. Não importa se o pai do espiritismo
produziu sua obra pioneira utilizando a mediunidade de quatro jovens francesas
que se comunicavam com os espíritos através de métodos primitivos de
psicografia. Ou se o fenômeno das mesas girantes, famoso nos salões da Europa
do século 19 como brincadeira de comunicação com os mortos, pareça uma
improvável história mal contada. O verdadeiro papel de O Livro dos Espíritos e
de toda a profícua e abundante obra de Kardec e seus seguidores é a
transformação do ser humano.
A
atualidade do Livro dos Espíritos está justamente no seu caráter moral e
orientador do comportamento. Ao considerar a imortalidade da alma e a evolução
do homem como o verdadeiro sentido da reencarnação, a doutrina espírita pode
ser interpretada como um manual para o aprendizado do bem e da verdadeira
felicidade. Questões como caridade, trabalho constante, perdão, humildade e
fraternidade, orgulho e vaidade, importância da família, livre arbítrio e lei
de causa e efeito são tratadas a fundo e com riqueza de detalhes em exemplos do
cotidiano. A obra é dividida em quatro grandes livros: As Causas Primeiras, no
qual os espíritos explicam o que é Deus e a origem da criação; Mundo Espírita
ou Dos Espíritos, onde estão descritos os detalhes da vida no mundo espiritual;
Leis Morais, que delineia a conduta do homem na Terra com base na justiça,
caridade, progresso, igualdade e amor; e Esperanças e Consolações, que trata
das penas e gozos, como a perda de entes queridos, a expiação e o
arrependimento, enfim, a justiça divina na perspectiva reencarnacionista.
A
vida terrestre é considerada uma escola, um meio de educação e aperfeiçoamento
pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento. O espírito se esclarece e se
engrandece à medida que for usando o seu livre arbítrio para praticar o bem e
repelir o mal. Na perspectiva da imortalidade da alma, não há, portanto, como
fugir da responsabilidade de se modificar condutas, de se transformar pelo
autoconhecimento, de se envolver com o trabalho voluntário, que todo espírita é
incentivado a praticar.
Mais
do que isso, o espiritismo incita o homem a voltar-se para dentro de si mesmo,
de forma a avaliar constantemente o compromisso com sua reforma íntima. É no
dia a dia que a obra de Kardec fala mais alto. No convívio familiar, onde se
encenam as maiores tragédias e infelicidades; no ambiente profissional, no qual
poder, vaidade e ganância roubam a paz e a sanidade de grande parte da
população; no cenário político, com corrupções, desvios e mentiras que causam
prejuízos imensuráveis aos cidadãos; e em sociedade, onde crimes e
transgressões afetam o equilíbrio, a harmonia e a confiança entre as pessoas.
Ao
enveredar na pesquisa que o levou a publicar O Livro dos Espíritos, Kardec
abriu as portas para uma compreensão superior e aprofundada dos dramas humanos
e de como superá-los para a conquista da paz social, do entendimento e da
conciliação. A mudança, no entanto, parte de cada um individualmente. O não
aprendizado significa repetição das lições em sucessivas experiências terrenas.
Não há castigo de Deus, mas simples lei de causa e efeito, proporcionada pela
misericórdia divina.
Como
doutrina cristã, o espiritismo traz os ensinamentos de seu mentor e guia ao
mais singelo cotidiano. Independentemente de crença ou convicção religiosa, a
leitura de O Livro dos Espíritos é de imenso valor, não apenas porque trata de
Deus, da imortalidade da alma e da natureza dos espíritos, mas sobretudo porque
revela as implicações das relações entre os homens, das leis morais, da vida
presente e futura, e do que se espera da humanidade. São assuntos em que cada
vez mais pessoas se debruçam em busca de um sentido superior para suas
existências.
Autora:
Ana Cristina Sampaio Alves
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