VI - A
CRENÇA NO FIM DO MUNDO ATRAVÉS DOS TEMPOS
1ª PARTE
Jed vis dans la nuée un clairon monstrueux et ce clairon semblait, au seuil
profond des cieux. Calme, attendre le souffle immense de 1'archange.
VICTOR HUMO, LA TROMPETTE DU JUGEMENT.

De resto, no mundo
inteiro, em todas as línguas, não se falava, agora, de outra coisa.
Os discursos dos
eminentes sacerdotes prosseguiram na capela Sistina e desfecharam na interpretação
resumida pelo cardeal arcebispo de Paris, quanto ao dogma Credo
resurrectionem carris. O sequente et vitam œternam ficara
tacitamente relegado à perspicácia dos futuros astrônomos e psicólogos. Esses
discursos haviam, de algum modo, historiado a doutrina cristã do fim do mundo,
em todos os tempos. Estudo curioso, por isso que representa ao mesmo tempo a
história do pensamento humano, em face do seu próprio e definitivo destino.
Julgamos, assim, dever aqui expô-lo em capítulo especial.
Deixamos por
instantes o papel de narrador do século XXV, para regressar à nossa época e resumir a crença dos tempos anteriores.
Séculos houve, de fé
ardente e profunda, nos quais – importa considerar –, fora da doutrina cristã,
todas as religiões abriram a mesma porta para o desconhecido, no extremo limite
da jornada terrena. É a porta do Dante na Divina Comédia, posto que
todas não houvessem imaginado, para além dessa porta simbólica, o paraíso, o
inferno e o purgatório dos cristãos.
Zoroastro e o
Zendavestá ensinavam que o mundo devia perecer de ignição.
A mesma idéia se
encontra na epístola de São Pedro.
Parecia que as
tradições de Noé e do Deucalião indicavam uma primeira destruição pela água e a segunda pelo elemento contrário.
Entre os Romanos,
Lucrécio, Cícero, Virgílio, Ovídio, têm a mesma linguagem e anunciam a
destruição final pelo fogo.
No capítulo anterior
vimos que, no pensamento de Jesus, a geração a que se dirigia não deveria
morrer antes da catástrofe anunciada. São Paulo, o verdadeiro fundador do
Cristianismo, apresenta a crença na ressurreição e no próximo fim do mundo,
como dogma fundamental da nova Igreja. E chega mesmo a repeti-lo oito ou nove
vezes, em sua 1ª Epístola aos Coríntios₄.
Infelizmente para o
profeta, os discípulos, aos quais assegurara que não morreriam antes do advento,
sucumbiram uns após outros, de morte comum.
São Paulo, que não
conhecera pessoalmente a Jesus, mas que era o mais ativo apóstolo da igreja nascente,
acreditava vivesse ele mesmo até o dia da grande aparição₅.
Contudo, todos
faleceram e o predito fim do mundo, com a volta definitiva do Messias, não se
realizou.
Nem por isso a crença
desapareceu. Deixava-se, apenas, de interpretar à letra a predição do Mestre,
para buscar-lhe o espírito. Contudo, não deixou de ser um grande golpe na
crença evangélica... Passaram a amortalhar piedosamente os mortos, a
encerrá-los em sarcófagos, sobre os quais inscreviam epitáfios que diziam ali
dormirem eles até o dia da ressurreição. Jesus deveria voltar “breve”, a fim de
julgar “os vivos e os mortos”.
A senha de
identificação dos cristãos era Maranatha, que se traduz por o Senhor
virá.
Os apóstolos Pedro e
Paulo morreram, provavelmente, no ano 64, durante a horrível carnificina
ordenada por Nero, após o incêndio de Roma, engendrado por ele e depois
atribuído aos cristãos, para ensejar-se o gozo de novos suplícios.
4............ I, 7-8; III, 13; IV,
5; VI, 2-3; XI, 26; XV.
5............Porque o mesmo Senhor
do céu descerá com algazarras, e com voz de Arcanjo, e com a trombeta de Deus: e os que em Cristo morreram,
primeiro ressuscitarão: – Depois nós outros, que ficarmos vivos, seremos com
eles juntamente arrebatados, saindo ao
encontro do Senhor em o ar: e assim estaremos sempre com o Senhor. – Assim que
uns aos outros consolai-vos com
estas palavras.
São João escreveu o
Apocalipse em 69. Uma onda de sangue se espalha sob o reinado do verdugo. Dir-se-ia
que o martírio era o galardão da virtude.
O Apocalipse parece
escrito no âmbito da alucinação coletiva e prefigura em Nero o anticristo,
precursor da volta do Messias.
Surgem os prodígios
de toda parte: cometas, estrelas cadentes, chuva de sangue, monstros, tremores
de terra, fome, peste e, sobretudo, a guerra dos Judeus e a queda de Jerusalém.
Nunca – poder-se-á talvez dizer – se acumularam tantos horrores em tão curto
período de anos. (64 a 69).
A pequena igreja de
Jesus parecia estar completamente dispersada. Em Jerusalém fora impossível
permanecer. O Terror de 1793 e a Comuna de 1871 nada representam ao lado da guerra civil da Judeia. A família de Jesus teve de fugir da cidade santa.
Jaques, irmão de
Jesus, fora assassinado. Falsos profetas surgiam para que se completasse a
profecia. O Vesúvio elaborava a tremenda erupção de 79, e já em 63 a cidade de Pompéia
tinha sido abalada por um tremor de terra.
Patentes estavam,
pois, todos os prenúncios do fim do mundo. O Apocalipse o confirma, Jesus vai repontar
num trono de nuvens, os mártires serão os primeiros a ressuscitar.
O anjo julgador aguarda apenas a ordem de
Deus.
Mas, após a
tempestade veio a bonança, terminou a guerra dos Judeus, o templo de Jerusalém
não mais se reconstruirá, Nero sucumbe com a revolução de Galba, Vespasiano e
Tito promovem a paz (ano 71) e... o mundo não acabou. Impôs-se, desde então, uma
nova interpretação evangélica. O advento do Cristo foi procrastinado para
quando se consumasse a derrocada do velho mundo romano, oferecendo, assim, tal
ou qual margem aos comentadores.
A catástrofe final
permanecia como infalível, mesmo próxima, in novíssimo die, embora
atufada de nuvens imprecisas, que lhe tiram todo o sentido literal, e mesmo
espiritual, das profecias. Não obstante, continua-se a esperar.
Santo Agostinho
consagra o XX capítulo de A Cidade de Deus (ano 426), a pintar a
renovação do mundo, a ressurreição, o juízo final e a Nova Jerusalém. O livro
XXI reporta-se à descrição do fogo eterno. O bispo de Cartago, diante do
fracasso de Roma e do império, presume assistir ao primeiro ato do drama. Mas,
o reino de Deus devia durar 1000 anos, e Satanás só poderia chegar depois. São
Gregório, bispo de Tours (573), primeiro historiador
dos Francos, assim começa a sua história: “No momento em que
retraço as lutas realengas com as nações inimigas, não resisto ao desejo de expor
minha crença. O terror produzido pela perspectiva do próximo fim do mundo
me levou a respigar nas crônicas o número de anos já transcorridos, por saber
claramente quantos conta o começo do mundo.”
O Salvador viera
santificar a Humanidade. Que esperaria ela para transportá-la ao céu?
A tradição cristã
perpetuava-se de ano em ano, de século a século, apesar dos desmentidos da
Natureza. Qualquer catástrofe – tremor de terra, epidemia, fome, inundação; qualquer
fenômeno –, eclipse, cometa, furacão, tempestade, eram encarados como sinais
precursores do cataclismo final. Os cristãos tremiam quais folhas levadas pelo
vento, na expectativa constante do julgamento decisivo, e os pregadores
alimentavam esse místico temor das almas tímidas.
Passadas e
constantemente renovadas as gerações, foi preciso definir melhor o conceito da história
universal. Fixou-se, então, o ano 1000 no espírito dos comentadores.
Várias seitas de
“milenários” surgiram, apregoando que Jesus reinaria na Terra com os seus
santos, durante 1000 anos, antes que viesse o Juízo Final. Ireneu, Pápias, e
Sulpício Sevérus compartilhavam essa crença. Alguns a exageraram, revestindo-a
de matizes sensuais, anunciando uma como espécie de bodas para uma era de
voluptuosidade.
Santo Agostinho e São
Jerônimo contribuíram bastante para o descrédito dessas teorias, mas sem atingir a
crença dogmática da ressurreição.
Os comentários do
Apocalipse continuaram a florir entre as fraudes sombrias da idade média, e a
opinião de que o ano 1000 assinalaria o fim e a renovação do mundo tomou vulto,
sobretudo, no décimo século. A ideia de finamento do mundo tornou-se, senão
universal, muito generalizada. Diversas cartas dessa época, assim começam: Termino
mundi apropinquante (aproximando-se o fim do mundo)... Em que pese a alguns
contraditores, parece-nos difícil não compartilhar a opinião dos historiadores,
notadamente Michelet, Henri Martin, Guizot e Dury, a respeito da generalidade
dessa crença no seio da cristandade. Sem dúvida, não é crível que o monge
francês Gerbert, então papa Silvestre II, ou o rei Roberto de França, hajam
pautado a vida por essa crença; mas, a verdade é que ela não deixara de
penetrar fundo as consciências timoratas, e que a seguinte passagem
apocalíptica era o tema de frequentes sermões: “Ao fim de 1000 anos, o demônio se libertará da sua
prisão e seduzirá as gentes que estão nos quatro ângulos da Terra... O livro da
vida será aberto, o mar restituirá os que tragou; o abismo infernal golfará seus
mortos e cada qual será julgado segundo suas obras, por Aquele que está
assentado no trono resplandecente... E haverá um novo céu e uma nova terra.”
Bernardo, um eremita
da Turíngia, havia precisamente elegido para tema de suas prédicas essas
palavras enigmáticas do Apocalipse e, no ano 960, anunciava de público o fim do
mundo. Foi ele, de fato, um dos mais ativos arautos da profecia, chegando até a
fixar a sua data, que seria a em que coincidisse a da Anunciação com a
sexta-feira, o que aliás se verificou em 992,
à revelia de qualquer catástrofe.
Druthmare, outro
monge de Corbie, anunciou novamente a destruição do globo para 25 de Março do ano 1000.
O terror foi tanto que o povo de muitas cidades procurou refugiar-se nas
igrejas, ali permanecendo até meia noite, na expectativa do juízo final, por morrer aos pés da
cruz.
É dessa época que
datam inúmeras doações. Toda gente legava terras e bens aos mosteiros, que tudo aceitavam, apregoando,
embora, o fim do mundo. Resta-nos, a esse respeito, uma crônica autêntica e
assaz curiosa, escrita pelo monge Raul Glaber, no ano 1000.
Diz ela, em suas
primeiras páginas: “Satanás não tardará a ser solto, de acordo com a profecia
de João, visto que os mil anos estão passados. É desses anos que nos
vamos ocupar.”
O fim do décimo e
começo do undécimo séculos marcam uma época verdadeiramente estranha, quão
sinistra. De 980 a 1040, parece que o espectro da morte abriu as asas sobre a
Terra.
A peste e a fome
avassalaram toda a Europa. Temos, em primeiro lugar, “o mal de fogo”, que calcinava as
carnes e as fazia cair de podre. Esses flagelados entupiam as estradas e iam, em
peregrinação, sucumbir junto dos santuários, ali se acumulando e saturando a
atmosfera de odores nauseabundos. Muitos jaziam insepultos, agarrados às santas
relíquias.
Essa peste horrorosa
ceifou, só na Aquitânia, mais de 40.000 pessoas e devastou todo o sul da
França. Seguiu-se lhe a fome. Voltara-se à barbárie.
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