PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

quarta-feira, dezembro 21, 2016

O FIM DO MUNDO - CAMILLE FLAMMARION

VI   -    A CRENÇA NO FIM DO MUNDO  ATRAVÉS DOS TEMPOS
1ª  PARTE
Jed vis dans la nuée un clairon monstrueux et ce clairon semblait, au seuil profond des cieux. Calme, attendre le souffle immense de 1'archange.

VICTOR HUMO, LA TROMPETTE DU JUGEMENT.

Importa fazer aqui ligeira pausa no turbilhão dos acontecimentos que nos empolgam, a fim de comparar esta nova expectativa do fim do mundo a todas as precedentes, bosquejando a traços rápidos a história curiosa desse evento, através de todos os tempos.
De resto, no mundo inteiro, em todas as línguas, não se falava, agora, de outra coisa.
Os discursos dos eminentes sacerdotes prosseguiram na capela Sistina e desfecharam na interpretação resumida pelo cardeal arcebispo de Paris, quanto ao dogma Credo resurrectionem carris. O sequente et vitam œternam ficara tacitamente relegado à perspicácia dos futuros astrônomos e psicólogos. Esses discursos haviam, de algum modo, historiado a doutrina cristã do fim do mundo, em todos os tempos. Estudo curioso, por isso que representa ao mesmo tempo a história do pensamento humano, em face do seu próprio e definitivo destino. Julgamos, assim, dever aqui expô-lo em capítulo especial.
Deixamos por instantes o papel de narrador do século XXV,  para regressar à nossa época e resumir a crença dos tempos anteriores.
Séculos houve, de fé ardente e profunda, nos quais – importa considerar –, fora da doutrina cristã, todas as religiões abriram a mesma porta para o desconhecido, no extremo limite da jornada terrena. É a porta do Dante na Divina Comédia, posto que todas não houvessem imaginado, para além dessa porta simbólica, o paraíso, o inferno e o purgatório dos cristãos.
Zoroastro e o Zendavestá ensinavam que o mundo devia perecer de ignição.
A mesma idéia se encontra na epístola de São Pedro.
Parecia que as tradições de Noé e do Deucalião indicavam uma primeira destruição  pela água e a segunda pelo elemento contrário.
Entre os Romanos, Lucrécio, Cícero, Virgílio, Ovídio, têm a mesma linguagem e anunciam a destruição final pelo fogo.
No capítulo anterior vimos que, no pensamento de Jesus, a geração a que se dirigia não deveria morrer antes da catástrofe anunciada. São Paulo, o verdadeiro fundador do Cristianismo, apresenta a crença na ressurreição e no próximo fim do mundo, como dogma fundamental da nova Igreja. E chega mesmo a repeti-lo oito ou nove vezes, em sua 1ª Epístola aos Coríntios₄.
Infelizmente para o profeta, os discípulos, aos quais assegurara que não morreriam antes do advento, sucumbiram uns após outros, de morte comum.
São Paulo, que não conhecera pessoalmente a Jesus, mas que era o mais ativo apóstolo da igreja nascente, acreditava vivesse ele mesmo até o dia da grande aparição₅.
Contudo, todos faleceram e o predito fim do mundo, com a volta definitiva do Messias, não se realizou.
Nem por isso a crença desapareceu. Deixava-se, apenas, de interpretar à letra a predição do Mestre, para buscar-lhe o espírito. Contudo, não deixou de ser um grande golpe na crença evangélica... Passaram a amortalhar piedosamente os mortos, a encerrá-los em sarcófagos, sobre os quais inscreviam epitáfios que diziam ali dormirem eles até o dia da ressurreição. Jesus deveria voltar “breve”, a fim de julgar “os vivos e os mortos”.
A senha de identificação dos cristãos era Maranatha, que se traduz por o Senhor virá.
Os apóstolos Pedro e Paulo morreram, provavelmente, no ano 64, durante a horrível carnificina ordenada por Nero, após o incêndio de Roma, engendrado por ele e depois atribuído aos cristãos, para ensejar-se o gozo de novos suplícios.

4............ I, 7-8; III, 13; IV, 5; VI, 2-3; XI, 26; XV.
5............Porque o mesmo Senhor do céu descerá com algazarras, e com voz de Arcanjo, e com a trombeta de Deus:                     e os que em Cristo morreram, primeiro ressuscitarão: – Depois nós outros, que ficarmos vivos, seremos com 
                eles juntamente arrebatados, saindo ao encontro do Senhor em o ar: e assim estaremos sempre com o                             Senhor. – Assim que uns aos outros consolai-vos com estas palavras.
São João escreveu o Apocalipse em 69. Uma onda de sangue se espalha sob o reinado do verdugo. Dir-se-ia que o martírio era o galardão da virtude.
O Apocalipse parece escrito no âmbito da alucinação coletiva e prefigura em Nero o anticristo, precursor da volta  do Messias.
Surgem os prodígios de toda parte: cometas, estrelas cadentes, chuva de sangue, monstros, tremores de terra, fome, peste e, sobretudo, a guerra dos Judeus e a queda de Jerusalém. Nunca – poder-se-á talvez dizer – se acumularam tantos horrores em tão curto período de anos. (64 a 69).
A pequena igreja de Jesus parecia estar completamente dispersada. Em Jerusalém fora impossível permanecer. O Terror de 1793 e a Comuna de 1871 nada representam ao lado da guerra civil da Judeia. A família de Jesus teve de fugir da cidade santa.
Jaques, irmão de Jesus, fora assassinado. Falsos profetas surgiam para que se completasse a profecia. O Vesúvio elaborava a tremenda erupção de 79, e já em 63 a cidade de Pompéia tinha sido abalada por um tremor de terra.
Patentes estavam, pois, todos os prenúncios do fim do mundo. O Apocalipse o confirma, Jesus vai repontar num trono de nuvens, os mártires serão os primeiros a ressuscitar.
 O anjo julgador aguarda apenas a ordem de Deus.
Mas, após a tempestade veio a bonança, terminou a guerra dos Judeus, o templo de Jerusalém não mais se reconstruirá, Nero sucumbe com a revolução de Galba, Vespasiano e Tito promovem a paz (ano 71) e... o mundo não acabou. Impôs-se, desde então, uma nova interpretação evangélica. O advento do Cristo foi procrastinado para quando se consumasse a derrocada do velho mundo romano, oferecendo, assim, tal ou qual margem aos comentadores.
A catástrofe final permanecia como infalível, mesmo próxima, in novíssimo die, embora atufada de nuvens imprecisas, que lhe tiram todo o sentido literal, e mesmo espiritual, das profecias. Não obstante, continua-se a esperar.
Santo Agostinho consagra o XX capítulo de A Cidade de Deus (ano 426), a pintar a renovação do mundo, a ressurreição, o juízo final e a Nova Jerusalém. O livro XXI reporta-se à descrição do fogo eterno. O bispo de Cartago, diante do fracasso de Roma e do império, presume assistir ao primeiro ato do drama. Mas, o reino de Deus devia durar 1000 anos, e Satanás só poderia chegar depois. São Gregório, bispo de Tours (573), primeiro historiador dos Francos, assim começa a sua história: “No momento em que retraço as lutas realengas com as nações inimigas, não resisto ao desejo de expor minha crença. O terror produzido pela perspectiva do próximo fim do mundo me levou a respigar nas crônicas o número de anos já transcorridos, por saber claramente quantos conta o começo do mundo.”
O Salvador viera santificar a Humanidade. Que esperaria ela para transportá-la ao céu?
A tradição cristã perpetuava-se de ano em ano, de século a século, apesar dos desmentidos da Natureza. Qualquer catástrofe – tremor de terra, epidemia, fome, inundação; qualquer fenômeno –, eclipse, cometa, furacão, tempestade, eram encarados como sinais precursores do cataclismo final. Os cristãos tremiam quais folhas levadas pelo vento, na expectativa constante do julgamento decisivo, e os pregadores alimentavam esse místico temor das almas tímidas.
Passadas e constantemente renovadas as gerações, foi preciso definir melhor o conceito da história universal. Fixou-se, então, o ano 1000 no espírito dos comentadores.
Várias seitas de “milenários” surgiram, apregoando que Jesus reinaria na Terra com os seus santos, durante 1000 anos, antes que viesse o Juízo Final. Ireneu, Pápias, e Sulpício Sevérus compartilhavam essa crença. Alguns a exageraram, revestindo-a de matizes sensuais, anunciando uma como espécie de bodas para uma era de voluptuosidade.
Santo Agostinho e São Jerônimo contribuíram bastante para o descrédito dessas teorias, mas sem atingir a crença dogmática da ressurreição.
Os comentários do Apocalipse continuaram a florir entre as fraudes sombrias da idade média, e a opinião de que o ano 1000 assinalaria o fim e a renovação do mundo tomou vulto, sobretudo, no décimo século. A ideia de finamento do mundo tornou-se, senão universal, muito generalizada. Diversas cartas dessa época, assim começam: Termino mundi apropinquante (aproximando-se o fim do mundo)... Em que pese a alguns contraditores, parece-nos difícil não compartilhar a opinião dos historiadores, notadamente Michelet, Henri Martin, Guizot e Dury, a respeito da generalidade dessa crença no seio da cristandade. Sem dúvida, não é crível que o monge francês Gerbert, então papa Silvestre II, ou o rei Roberto de França, hajam pautado a vida por essa crença; mas, a verdade é que ela não deixara de penetrar fundo as consciências timoratas, e que a seguinte passagem apocalíptica era o tema de frequentes sermões: “Ao fim de 1000 anos, o demônio se libertará da sua prisão e seduzirá as gentes que estão nos quatro ângulos da Terra... O livro da vida será aberto, o mar restituirá os que tragou; o abismo infernal golfará seus mortos e cada qual será julgado segundo suas obras, por Aquele que está assentado no trono resplandecente... E haverá um novo céu e uma nova terra.”
Bernardo, um eremita da Turíngia, havia precisamente elegido para tema de suas prédicas essas palavras enigmáticas do Apocalipse e, no ano 960, anunciava de público o fim do mundo. Foi ele, de fato, um dos mais ativos arautos da profecia, chegando até a fixar a sua data, que seria a em que coincidisse a da Anunciação com a sexta-feira, o que aliás se verificou em 992, à revelia de qualquer catástrofe.
Druthmare, outro monge de Corbie, anunciou novamente a destruição do globo para 25 de Março do ano 1000. O terror foi tanto que o povo de muitas cidades procurou refugiar-se nas igrejas, ali permanecendo até meia noite, na expectativa do juízo final, por morrer aos pés da cruz.
É dessa época que datam inúmeras doações. Toda gente legava terras e bens aos mosteiros, que tudo aceitavam, apregoando, embora, o fim do mundo. Resta-nos, a esse respeito, uma crônica autêntica e assaz curiosa, escrita pelo monge Raul Glaber, no ano 1000.
Diz ela, em suas primeiras páginas: “Satanás não tardará a ser solto, de acordo com a profecia de João, visto que os mil anos estão passados. É desses anos que nos vamos ocupar.”
O fim do décimo e começo do undécimo séculos marcam uma época verdadeiramente estranha, quão sinistra. De 980 a 1040, parece que o espectro da morte abriu as asas sobre a Terra.
A peste e a fome avassalaram toda a Europa. Temos, em primeiro lugar, “o mal de fogo”, que calcinava as carnes e as fazia cair de podre. Esses flagelados entupiam as estradas e iam, em peregrinação, sucumbir junto dos santuários, ali se acumulando e saturando a atmosfera de odores nauseabundos. Muitos jaziam insepultos, agarrados às santas relíquias.
Essa peste horrorosa ceifou, só na Aquitânia, mais de 40.000 pessoas e devastou todo o sul da França. Seguiu-se lhe a fome. Voltara-se à barbárie.


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