A PRIMEIRA
CONDIÇÃO PARA MODIFICAR A REALIDADE CONSISTE EM CONHECÊ–LA.
EDUARDO GALEANO
Dos males da modernidade, talvez nenhum se equipare à ampla proliferação das
drogas.
Vidas individuais e famílias reduzidas a farrapo e
escombro diante do flagelo do vício.
Numa esquina qualquer, de uma cracolândia qualquer, de
uma cidade brasileira qualquer, um jovem acende um cachimbo de crack.
Quantas vidas ainda serão reduzidas a farrapos, quantos
destinos ainda haverão de se perder para sempre?
Para se entender a devastadora epidemia das drogas que
assola a nossa sociedade, é preciso analisar o tema sob uma perspectiva mais
ampla.
Não se pode abordar o tema sem fazer referência às
nossas fronteiras nacionais.
No cenário da geopolítica global, o Brasil ocupa uma
posição de relevância na complexa rede internacional do narcotráfico.
O país possui cerca de 15 mil quilômetros de
fronteiras, com
fiscalização muito deficiente ou mesmo inexistente,...e alguns países vizinhos
elencados entre os maiores produtores mundiais de drogas.
Colômbia
Maior produtor mundial de cocaína, com 68 mil hectares
de cultivo de coca.
Peru
Segundo maior produtor de cocaína, com 59,9 mil
hectares.
Seguida a tendência atual, deverá superar a Colômbia nos próximos anos.
Bolívia
Terceiro maior produtor mundial de cocaína, com 30,9
mil hectares de cultivo de coca.
Paraguai
Segundo maior produtor mundial de maconha, atrás
apenas do México.
O que leva os países andinos a produzir tanta droga
são essencialmente questões econômicas.
A maior parte dos que se dedicam aos cultivos não são
narcotraficantes, mas
produtores
rurais miseráveis, vislumbrando um lucro superior ao
que obteriam caso se dedicassem a plantações tradicionais de hortifrutigranjeiros.
O processo de refino, transporte e comercialização da
droga tem rendido aos narcotraficantes lucros astronômicos.
Segundo a ONU, o tráfico de drogas movimenta anualmente em todo o
mundo cerca de 500 bilhões de dólares.
Grande parte da cocaína produzida nos países andinos
atravessa as fronteiras rumo ao território brasileiro, seja para envio posterior à Europa e América do Norte, seja para distribuição no mercado nacional brasileiro.
O mapa ao lado mostra a extensão do limite fronteiriço
do Brasil com os três maiores produtores mundiais de cocaína – responsáveis por
praticamente 100% da produção mundial.
O mapa permite visualizar a dimensão do problema que o
Brasil enfrenta.
Este mapa mostra a dinâmica de distribuição da cocaína
produzida pelos países andinos.
Grande parte da droga segue para a América do Norte,
enquanto outra parte segue, via território brasileiro, para a Europa.
Uma crescente parcela da cocaína produzida se destina
ao mercado consumidor brasileiro, que tem crescido consideravelmente nos
últimos anos.
Num mundo globalizado, caracterizado pela fluidez das
transações comerciais, o crime organizado segue suas atividades a pleno vapor.
Para ilustrar a dificuldade em se deter a atuação do
crime organizado transnacional, vejamos o exemplo dos E.U.A.
Os E.U.A. têm enfrentado graves problemas de segurança
na sua fronteira com o México, envolvendo principalmente organizações ligadas
ao narcotráfico.
Apesar de dispor de uma polícia federal dedicada
exclusivamente ao combate ao tráfico, e de ter os soldados mais bem treinados e
equipados do mundo, eles têm falhado sucessivamente em evitar o ingresso de
carregamentos de drogas em seu território.
Até apelaram para a construção de um muro físico que separa a divisa entre os dois países, noite e dia
vigiado por um forte esquema de segurança.
Mas, vira e mexe, túneis por onde volumosos
carregamentos de droga continuam passando livremente são descobertos.
Alguns especialistas sustentam que enquanto houver
gente querendo consumir droga, os traficantes darão um jeito de garantir o
lucro auferido com a venda.
Se a superpotência mundial não consegue cuidar de uma
fronteira seca com um único país, que é muito mais um corredor do que produtor
de drogas, imagine a situação nas fronteiras brasileiras, com suas dimensões
continentais.
A fronteira brasileira com a Bolívia sozinha é mais
extensa do que toda a faixa entre México e E.U.A.
Enquanto a fronteira entre México e E.U.A. é uma
fronteira seca e desértica, a brasileira inclui a densa floresta amazônica, com
seus mil rios, lagos e áreas pantanosas.
O próprio ministro da Justiça reconheceu recentemente
que há um “nível elevado de vulnerabilidade” nas nossas fronteiras.
Outras autoridades apontam as fronteiras brasileiras
entre as mais desguarnecidas do mundo.
Em 2010, foi lançado o livro-reportagem “Fronteiras
Abertas – Um retrato do abandono da Aduana Brasileira”.
O trabalho aborda como a falta de vigilância e fiscalização permite a entrada
no país de armas, drogas, munições e produtos contrabandeados, além de
facilitar o ingresso e a saída de
criminosos, veículos roubados e a
remessa ilegal de dinheiro que abastece toda rede de ilegalidades.
O livro – resultado de uma viagem de dez meses que os
autores empreenderam por mais de 15.000 km de fronteira seca – narra um cenário
de fronteiras sem dono.
A fragilidade de nossas fronteiras está
diretamente relacionada à ampla circulação de drogas nas nossas cidades – uma
triste e dura realidade com a qual convivemos e que nos desafia a buscar juntos
alguma saída.
Um levantamento realizado pela Confederação Nacional
dos Municípios em 2010 constatou que 98% dos municípios do país enfrentam problemas
de circulação e consumo de crack.
Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas, a droga é hoje uma ameaça onipresente.
Já que a produção e comercialização das drogas
encontram-se longe de serem adequadamente combatidas, vamos refletir um pouco
sobre a outra ponta do processo do tráfico: o usuário.
O que é que leva uma pessoa a embarcar no risco
suicida que as drogas representam?
Os usuários podem ser agrupados em duas categorias
básicas.
De um lado, temos a categoria de usuários formada pela
parcela “invisível”, excluída, esquecida e ignorada da sociedade.
Moradores de rua e crianças e adolescentes em situação
de risco social, que muitas vezes recorrem às drogas para amenizar a vivência
de rua, e sua amarga rotina de fome e frio, abusos, privações, humilhações e
violência.
Nas décadas de 1980 e 1990, crianças de rua tinham na
cola de sapateiro a principal droga de escolha.
Cola de Sapateiro: Solvente e inalante, cujas substâncias básicas são o
tolueno e o benzeno, depressoras do Sistema Nervoso Central.
A aspiração da cola de sapateiro causa euforia,
desinibição, alteração das percepções, insensibilidade à dor, fome e cansaço.
Pode causar alterações na respiração, culminando com a
morte do usuário.
Na época, políticos e governantes se fizeram de cegos
diante do
problema.
Disseram: “Não temos nada a ver com isso.”
A sociedade civil também se fez de surda, tratando com
frio descaso o abandono social.
E dissemos: “Não é problema nosso tampouco.”
Passaram-se duas décadas e o problema se agravou
drasticamente.
Crianças e adolescentes ao relento e expostos às
mazelas e durezas da vivência de rua, que ontem cheiravam cola, hoje se
tornaram escravos de drogas muito mais devastadoras: o crack e o oxi.
Crack/Oxi: subprodutos da cocaína misturados a soda
cáustica ou bicarbonato de sódio; – são
cinco vezes mais potentes que a cocaína, produzindo dependência com muita
facilidade.
A fumaça chega ao cérebro com velocidade e potência
extremas, causando problemas respiratórios agudos.
Produzem uma sensação de confiança, poder e excitação,
seguida por um período de depressão, paranoia, com alucinações e delírios.
Não raro, tornam o usuário violento e suicida em
potencial.
A expectativa de vida dos usuários gira entre quatro e
oito anos, –
crianças e adolescentes que não chegarão à idade adulta.
O tratamento para a recuperação de usuários é muito
complexo, e o completo descaso e
despreparo das instâncias públicas no trato da questão
faz com que a reabilitação psicossocial seja uma possibilidade bastante remota.
A fuga. A ilusão de identidade, de satisfação, de plenitude.
A sensação de preencher o vazio, a fome e o abandono
social.
Além dos moradores de rua, vítimas do abandono e
descaso social, há uma outra categoria de usuários, formada por jovens que tiveram condições sociais
privilegiadas.
Ao contrário da cruel invisibilidade social que
acomete as camadas que sobrevivem à margem da sociedade, estes jovens têm nome
e sobrenome, possuem lares, álbuns de fotografias, pais e famílias.
Tiveram acesso a boas escolas e a uma educação que
teoricamente os deveria ter prevenido
sobre a viagem geralmente sem volta que é o mundo do vício.
Não foi a miséria material que os empurrou para o
vício, mas uma outra forma de miséria, a existencial e afetiva.
Cristiane Gaidies, conhecida pelo apelido de
“Maçãzinha”, era uma jovem de cabelos cor de mel, olhos expressivos e sorriso
claro.
Filha de uma psicóloga e um dentista, dormia até os 18
anos abraçada ao ursinho de pelúcia.
Como tantas jovens de sua idade, gostava de ir a
shopping centers, festas e shows de rock.
Aos 19 anos, abandona os amigos e envolve-se com
maconha e crack.
A família tenta de tudo, – diálogos, terapeutas, psiquiatras, mudanças,
internação numa clínica especializada.
“Ela sumia de casa, ficava vagando pelas ruas fumando
crack e depois reaparecia parecendo uma mendiga”, lembra a mãe.
A ex-estudante de classe média torna-se aos 20 anos
uma andarilha das ruas de São Paulo, uma
nômade urbana, praticante de pequenos furtos para alimentar seu vício.
Numa noite, tenta roubar um toca-fitas, exigido por um
traficante que a abastece.
É o preço da droga.
O dono do veículo, um jovem empresário, presencia a
cena, e do alto do seu apartamento no 12º andar dispara
contra o estacionamento do prédio com o objetivo de afugentar os ladrões.
O tiro, que era para ser de advertência, atinge em
cheio a frágil jovem pelas costas.
Ela ainda se arrasta por 30 metros antes de cair sem
vida no asfalto manchado de vermelho.
No bolso traseiro de sua calça levava um cachimbo de
crack, feito de uma tampa de tubo de pasta de dente e uma antena oca de rádio
de carro.
A outrora adolescente de cabelos cor de mel, olhos
expressivos e sorriso claro passou
seus últimos dias...num casarão abandonado, sujo e úmido, em companhia de
prostitutas, travestis, mendigos
e viciados.
Desde muito jovem Nelson dal Poggetto sabia o que era
sofrer.
Ao 12 anos começou sua aflitiva jornada pelo mundo das
drogas, iniciando
com álcool e maconha, para em seguida passar para cocaína e crack.
Internado duas vezes, volta a fumar o cachimbinho de
crack pouco tempo depois de receber alta.
Durante as recaídas, troca celular e outros pertences
por droga, mergulhando num ciclo
de depressão e arrependimento.
Internado duas vezes, volta a fumar o cachimbinho de
crack pouco tempo depois de receber alta.
Durante as recaídas, troca celular e outros pertences
por droga, mergulhando num ciclo de depressão e arrependimento.
Aos 19 anos, antes de cometer suicídio, deixa um
bilhete de despedida para a família:...
“Amei muito vocês e vou tranquilo.
Isso vai ser um alívio”.
Adriana de Oliveira era uma garota linda e cheia de
sonhos, tida por todos que a conheciam como uma pessoa meiga, doce, brincalhona
e amante da vida.
Era boa aluna na escola, e tocava piano.
A jovem de 20 anos, de olhos azulados, pele morena e
cabelos escorridos pelos ombros iniciava
uma promissora carreira como modelo.
Parecia ser uma dessas pessoas abençoadas, para quem
nada dá errado na vida.
No entanto, a vida de Adriana toma um outro rumo após
o namorado, um rapaz que cursa o 3º ano de direito e filho de um bem-sucedido advogado, a apresentar ao mundo
das drogas.
Quão tênue e vulnerável é a linha que separa a
experimentação e o uso recreativo do risco potencial que as drogas representam.
Durante uma festa numa chácara, Adriana passa mal,
sente dificuldades para respirar e apresenta um quadro convulsivo.
Ao ser transportada para o pronto-socorro já é tarde
demais.
O laudo médico revela a causa da morte: – uma mistura fatal de álcool, maconha e cocaína.
Mais uma precoce partida, aos 20 anos.
Mais uma história interrompida pelo álcool, pela
maconha e cocaína.
Diante das histórias de Adriana, Nelson, Cristiane e
de tantos outros jovens, talvez seja hora de refletirmos sobre os valores que
norteiam a nossa sociedade.
Uma sociedade de consumo voraz, que transformou a
busca do prazer imediato e da satisfação numa condição existencial essencial.
Jovens desorientados, que buscam nos prazeres
ilusórios uma forma de se libertar do peso de uma sociedade que desumanizou o
homem e humanizou o dinheiro e os bens materiais.
Tristes retratos do fracasso dos laços de
sociabilidade familiar e comunitária.
O desamor e o não-reconhecimento afetivo servindo de
pilares para uma vivência vazia.
Que sociedade é esta que construímos, tão repleta de
valores desvirtuados?
Talvez seja hora de, enfim, refletirmos com mais
atenção sobre o impacto devastador da
nossa atual programação televisiva, que golpeia especialmente, com cruel
violência, crianças, jovens e adolescentes.
Anúncios que associam a felicidade e o bem-estar ao
consumo de bebidas alcoólicas. (uma
droga tão ou mais nociva que as ilícitas)
Artistas com imenso apelo junto ao público
infanto-juvenil servindo de “exemplo” para gerações de crianças e adolescentes.
Empresários, artistas, publicitários e donos de
emissoras de tv faturam bilhões.
E nós arcamos com os danos e custos sociais
decorrentes.
Programas que massacram a subjetividade e anulam o senso crítico, banalizando e mercantilizando a
existência.
“Vamos bisbilhotar”
“Pode espiar à
vontade”
“Pra que educação, arte ou cultura?”
“Vamos banalizar a existência”
“Viva a futilidade!”
A torrente abusiva de publicidade que invade os lares
e formata a mente de crianças e adolescentes desde a mais tenra idade.
A mensagem impregnada em mentes indefesas, de que
somos o que possuímos, e que viver se resume a consumir.
“Troque de carro, troque de celular, beba mais
cerveja, etc. etc. etc...”
Uma vida centrada em bens materiais, uma existência
sem um sentido ou propósito mais nobre.
Nada melhor do que a televisão para preencher uma vida
vazia, carente de aspirações elevadas e sem padrões morais firmes...
Não seria uma vida vazia de propósito, sentido e
conteúdo uma porta de fácil entrada para o abuso do álcool, a maconha, a
cocaína, o crack e todas as demais drogas que entorpecem a mente?
Talvez seja hora de refletirmos sobre como a atual
programação televisiva está contribuindo para solapar as bases éticas e morais
necessárias para que crianças, jovens
e adolescentes possam resistir às falsas promessas que
as drogas (lícitas e ilícitas) oferecem.
Acreditar que as forças policiais conseguirão sozinhas
algum dia resolver o problema das drogas é ignorar as causas reais que
alimentam a degradação moral, e o tráfico e vício subsequentes.
O máximo que as forças policiais isoladamente
conseguirão é prosseguir na sua heroica tarefa de “enxugar gelo”,...entupindo
cada vez mais e mais e mais as já
desumanas e superlotadas prisões.
Para reverter a batalha contra as drogas, devemos
buscar novos paradigmas sociais e existenciais.
Buscar corrigir as causas estruturais que conduzem ao vício que alimenta o tráfico.
Vejamos alguns componentes do nosso complexo mosaico
social tão repleto de falhas, que precisam ser discutidas e sanadas caso
queiramos construir uma sociedade soberana e livre:...
Talvez seja hora de acordarmos para o fato de que a epidemia das drogas é apenas um dos sintomas de um problema
muito mais amplo, que encontra sua origem no grave descaso com a Educação e a
Infância no país.
O escritor José Saramago dizia: “Para se acabar com as
velhas prisões, é
necessário construir novas escolas.”
“No Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia
verde-amarela.” Silviano
Santiago.
Na guerra contra as drogas, mais importante do que
soldados e policiais são os professores e educadores.
Uma educação plena, capaz de transmitir valores e
virtudes, conduzindo cada criança em direção à sua plenitude.
Uma educação capaz de banhar de sentido, propósito e
bondade as vidas que iniciam sua jornada pelos caminhos do mundo.
O legítimo anseio que todos trazemos no peito, de
descobrir por que existimos, e de revestir os nossos dias de beleza, poesia, propósito
e dignidade.
O desejo de “ver com olhos livres”.
A “alegria dos
que não sabem e descobrem”.
Há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor
e fruto.
Trocar o amargo reprimir e remediar pela doçura de
amar, ensinar, prevenir, e juntos descobrir.
“Só a participação cidadã é capaz de mudar esse país.”
Betinho.
Um outro mundo é possível.
Projeto “Compaixão e Cidadania”
Um espaço para refletirmos sobre temas essenciais.
compaixao_cidadania@hotmail.com
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