PAUL GIBIER – ANÁLISE DAS COISAS
Parte Primeira – Estudo do Macrocosmo Capítulo I
Vista geral sobre as coisas
O
frontispício deste livro traz em letras garrafais estas palavras: Análise das Coisas. Eis aí um título
muito vasto que poderia parecer pretensioso em tão pequeno volume. Vou,
entretanto, fazer todo o possível para justificá-lo e esforçar-me por bosquejar
uma análise sucinta do Universo, do qual somos parte.
Aquele que
jamais experimentou as angústias dos grandes problemas da vida e da morte, e
cujo espírito ainda se não elevou acima das coisas vulgares, siga o seu
caminho; isto não foi escrito para ele.
Não foi
também para os que limitam a Ciência ao quadro do seu saber, que estas páginas
foram traçadas, mas para os que levam as suas indagações mais alto – excélsio –, interrogam a si mesmos por
que estão neste planeta e que força os conduziu para aqui. Rogo a estes
últimos, sob cujos olhos se encontrarem estas linhas, queiram por um instante
concentrar o pensamento, isolá-lo tanto quanto possível dos objetos exteriores,
abmaterializá-lo, por assim dizer,
porque só ele é bastante rápido para fazer a viagem que devemos empreender.
Eis, antes
de tudo, o itinerário que vamos seguir: Depois de nos libertarmos pelo
pensamento da ação do peso, a fim de nos emanciparmos da servidão que nos liga
à Terra, seguiremos esta com os olhos do espírito e examinaremos ligeiramente a
sua superfície. Tomaremos, depois, uma parcela da substância de que ela é formada
e buscaremos compreender-lhe a constituição; partiremos do átomo, em uma
palavra, e, por degraus enormes, tentaremos escalar as alturas da imensidade, a
fim de obtermos, caso possa ser, uma ideia do Macrocosmo.
Depois,
tornando a descer à nossa planetosfera, procuraremos aí o Microcosmo e far-lhe-emos
a anatomia e a fisiologia comparadas. Comparadas às de seu modelo.
Em nossa
titanesca excursão através do Éter profundo dos Céus, repousaremos, um
instante, em um ponto do Espaço ilimitado, a fim de descobrirmos nele o
terceiro princípio, o terceiro “Ser real”, que, com a Matéria e a Energia,
constitui o Universo animado.
A pesquisa
deste princípio no homem, a demonstração da sua independência e da sua
persistência fora da matéria, farão o objeto principal do nosso estudo.
* * *
Sabemos que,
baseando-se na forma dos oceanos e das terras, bem como, segundo se asseguram,
em certas tradições secretas da história oculta, alguns sábios (nem todos fazem
parte do Instituto) pretendem que a cada período terrestre de vinte e cinco mil
e alguns centos de anos, determinado pelo fenômeno astronômico conhecido sob o
nome de precessão dos equinócios,
realiza-se o mais pavoroso dos cataclismos. Pavoroso para quem vive e se move
sobre esta esferazinha, fica subentendido, porque, como bem compreendemos, o
acidente passa sem dúvida quase despercebido dos nossos vizinhos mais próximos,
os jupiterianos ou os marcianos, se eles não estão mais adiantados do que nós
em ótica astronômica.
Em consequência
da mudança de inclinação do eixo dos polos, a Terra se apresentaria em face do
seu grande magneto, o Sol, de modo a deslocar o próprio centro de atração, que
um lado do equador terrestre passaria a pequena distância sobre o lado oposto.
Isto traria
como consequência ou como efeito determinar um deslocamento das águas que, em
razão de sua fluidez, tendem naturalmente a correr para o lado onde são mais
atraídas, como o prova o fenômeno das marés.
Se fosse só
isto, talvez não houvesse grande mal, porém o nível das águas, diminuindo tanto
no polo elevado quanto na outra parte, faz que a calota imensa de gelo que o
envolve se despedace, não estando mais sustentada pelas águas. Estes gelos,
cuja espessura não é de menos de 40 ou 50 quilômetros acumulados no Ártico ou
no Antártico donde as águas se retiram, deslocam-se subitamente, ocasionando um
medonho desmoronamento. Grandes blocos de gelo, da espessura de muitos
Himalaias sobrepostos, precipitam-se expelem as águas, arrastam-se e rolam com
elas, raspando os continentes e transportando para longe montanhas de rochas,
que mais tarde o homem denominará erráticas. A água salgada tudo submerge,
exceto alguns planaltos elevados e certas grimpas de serras. Depois, quando se
faz completo silêncio, sobre os antigos continentes, desde então sepultados no
fundo do salso oceano, surgem novas terras, lamacentas, cobertas de lodo
salgado e de ervas desconhecidas. Semelhantes a monstros marinhos que, de
repente, após uma borrasca saíssem horrendos e glaucos do seio das ondas agitadas,
assim se mostram elas à face da luz assustada.
Essas terras
limosas, emergidas de há pouco, aparecem aos homens que escaparam ao flagelo,
os quais guardam tradicionalmente a lembrança delas em histórias de dilúvios
que se encontram em livros sagrados, escritos sobre a origem de todas as
religiões.
“Lançai os
olhos sobre o globo terrestre – dizem os partidários dessa teoria diluviana – e
observai quanto difere o hemisfério sul do setentrional: neste último, só
vereis terras; ao contrário, no Sul as águas dominam, e aí estão de alguma
sorte acumuladas. Os elevados planaltos, os cimos das regiões montanhosas, sob
a forma de ilhas, encontram-se aí copiosamente. Além disso, todos os
continentes, as duas Américas, a África, a Índia, as grandes penínsulas indochinesas,
terminam em ponta na direção do hemisfério para o qual correram as águas. Que
significaria e que destino teria essa Atlântida, cuja reminiscência se
transmitiu através das idades e foi ilustrada por Platão, se não a
considerarmos um continente por aquela forma submergido?
O que
indicam – acrescentam eles – estas camadas alternadas e superpostas de fósseis
marinhos, depois de fósseis telúricos, depois marinhos, que ainda encontramos
debaixo do solo dos nossos campos, e até sobre nossas montanhas, senão que o
Sol alumiou ao nível do mesmo ponto o oceano e o continente habitado?”
Mas,
deixemos de parte esse assunto pouco importante em si mesmo, sob nosso ponto de
vista. O nosso pensamento voa livremente, desligado de todos os laços
materiais, acima da superfície terrestre, acima das ilhas de gelo, colossais,
que se entrechocam e enchem os ares de escuma e poeira de neve, acima destes
continentes que se esboroam com toda a vida que encerram nos negros abismos dos
novos oceanos: só temos a temer os grandes cataclismos periódicos. Que importa
um dilúvio de mais ou de menos? Isto não poderia perturbar-nos em nossa
indagação do absoluto e compreendemos muito bem Arquimedes, alheio às coisas
que o cercavam, impávido, deixando-se matar pelos antropomorfos, cujo ferro
assassino lhe cortou o êxtase científico.
Comecemos,
pois, o nosso estudo do macrocosmo.
* * *
A análise
filosófica, a teoria atômica, como a dos equivalentes químicos, ambas deduzidas
de proporções determinadas e constantes, encontradas nas combinações dos corpos
entre si, induzem-nos a considerar a matéria como sendo um composto de
elementos extremamente sutis, grupados uns com os outros, de diferentes modos:
dá-se o nome de moléculas a estes
elementos. Mas, a análise vai mais longe: estas moléculas, por menores que as
possamos imaginar, compõem-se de aglomerações de outros elementos
“indivisíveis”, como o indica o seu nome; estes elementos da molécula são os átomos.
Se a esta
pergunta: “que é a matéria” se respondesse: “é uma coisa que podemos ver e
tocar, coisa formada de partes elementares, que, consideradas como matéria, não
existem absolutamente”, suponho que muitas pessoas ficariam surpreendidas
ouvindo tal definição. E, entretanto, isso é sustentado por personagens eminentes,
tudo o que há de mais eminente, os partidários da Teoria do átomo inextensível.
Não sei com
segurança se essa ideia foi discutida pelos antigos filósofos gregos; o certo é
que ela existe simbolicamente expressa nas filosofias indostânicas. Em todo
caso, por meados do século passado, ela foi apresentada pelo padre Boscowich.
Sábios como Ampère, Faraday, Cauchy, etc., e filósofos quais Dugald-Stewar,
Vitor Cousin, Vacherot (Revue des Deux
Mondes, agosto de 1876), etc, constituíram-se campeões convencidos da ideia
do átomo inextensível, que se não deve confundir com a Teoria sustentada por Hume,
Berkeley, Hamilton, Stuart Mill, Coyteux, entre outros, e segundo a qual nada
existe. Górgias, o célebre sofista de Leontinos, havia ensinado a doutrina de
que nada existe, mais de 400 anos
antes da nossa era.
Que seria o
átomo então? uma ficção matemática? Certamente que não, mas os elementos da
matéria parecem ser unos e semelhantes
para todos os corpos; os alquimistas, apoiados nessa ideia, procuravam e ainda
procuram a transmutação dos metais. Além disso, podia suceder que, nesse ponto,
a força e a matéria se encontrassem e se confundissem; eis um assunto do qual
nos tornaremos a ocupar.
Seja como
for, em virtude da grande lei da
conservação da matéria, que Lavoisier definitivamente estabeleceu, apesar
de seus movimentos e migrações perpétuas, o átomo não varia nem se destrói: é
indestrutível e invariável, constituindo apenas um elemento fluídico, cíclico,
giratório do fluido universal de que a matéria é formada (Helmholtz, William
Thomson, Tait, etc.).[i]
A energia
animal dos átomos, de um movimento tão rápido que a imaginação não pode fazer
uma ideia dele, seria pois o agente real que fixa a molécula e esta por sua vez
não será senão a energia condensada?
Simples teoria!... A verdade é que os físicos estão hoje de acordo,
considerando os corpos mais densos como representando apenas em aparência uma superfície contínua, como,
por exemplo, uma esfera, oca, de prata, cheia de água e soldada hermeticamente.
Colocando sobre uma bigorna esta bola e batendo-se-lhe com um martelo, a água
escapa-se por todos os poros do metal a cada golpe do martelo e vem aljofrar a
sua superfície, segundo experiências dos acadêmicos de Florença. Outros fatos
nos demonstram que a ideia da impenetrabilidade da matéria dos corpos é absolutamente
falsa. Sem falar da mistura de uma parte de álcool e outra de água, que dá um
volume total inferior aos dois volumes primitivos dos dois líquidos separados –
porque pode dar-se neste caso uma variedade de combinação –, os fatos persistentes
de penetrabilidade produzidos sob a influência da força psíquica – como o anel de vidro e o anel de marfim, que
subitamente aparecem enfiados um no outro quais elos de uma corrente, não guardando
vestígio de solução de continuidade – estes fatos demonstram, não somente a
penetrabilidade dos corpos, mas também a sua desmolecularização e reconstituição possíveis ad integrum, sob a influência de certas forças das quais a ciência
futura vai fazer um dos objetos principais de observação.
O volume das
moléculas pode ser, quando muito, avaliado por milionésimos de milímetros, e
mesmo levando em conta o espaço relativamente considerável que as separa, é
ainda por trilhões, quintilhões, sextilhões que devemos contá-las em um
milímetro cúbico.
Elas estão
em um estado contínuo de agitação, de projeção, de choques violentos, de
atração, de repulsões enérgicas, das quais é sem dúvida um pálido reflexo o
movimento browniano das partículas microscópicas. Fazemos uma ideia do seu
tremendo turbilhão, quando vemos que no hidrogênio, em pressão e temperatura
ordinárias, as moléculas deste gás estão animadas da velocidade mais ou menos
de 2.000 metros por segundo (Joule) e que cada uma sofre de suas vizinhas cerca
de 17 bilhões de choques no mesmo espaço de tempo (Clausius, Maxwell,
Boltzmann). “É o bombardeio operado por essa multidão de pequenos projéteis
contra a parede envolvente, que constitui a tensão dos gases”, diz M. E.
Jouffret em notável trabalho, onde encontramos, a respeito da reconstituição da
matéria, numerosas exposições desenvolvidas e claras, sabiamente estudadas (Introduction à l’étude de l’Énergie).
Cada
molécula, formada por uma multidão de átomos-turbilhões,
é hoje considerada por alguns sábios do modo pelo qual ela o foi antigamente
por iniciados da Índia e do Egito, isto é, como um sistema planetário “com todas
as complicações de movimento e de vida”, dirigida esta, segundo os pandits da Índia atual, por
inteligências elementares inferiores (élémentals).
Os corpos, que são aglomerações de moléculas, seriam assim os análogos das
vias-lácteas e das nebulosas resolúveis.
Em resumo,
tomando uma partícula microscópica de matéria qualquer, se a dividirmos em
pensamento muitos milhares de vezes, chegaremos a obter uma molécula que só
seria percebida por meio de nossos instrumentos mais poderosos, se o poder de
aumento dos mais fortes microscópios crescesse cerca de mil vezes. E esta
molécula é por sua vez uma aglomeração de átomos, que podemos considerar como
turbilhões, círculos de energia, produzindo, por movimentos variados, as aparências da matéria, tal como a percebemos.
Uma parcela de dinamite, onde se acumulasse enorme quantidade de energia mecânica, poderia representar
uma imagem grosseira da molécula considerada segundo as mais sábias teorias,
comparando a energia mecânica da
dinamite à energia condensada na matéria,
e os gases, condensados indiretamente pelas manipulações químicas na dinamite,
ao Éter arranjado sob a forma de
átomos na molécula. A matéria não passaria, pois, de uma aparência da energia.
Em presença
desta análise da matéria e dos resultados a que ela conduz, não estaríamos
autorizados a admitir, com Hume, Berkeley, Hamilton, Stuart Mill, Coyteux,
etc., que nada existe realmente? Sim, se só houvesse matéria e energia (força)
no mundo, porque a própria energia, assim como veremos mais adiante, tende, não
a desaparecer, mas a repousar “no sétimo dia”, e o dinâmico tende a tornar-se
puramente potencial. Em outras palavras, o Universo tende ao repouso absoluto.
* * *
No momento
de terminar este estudo sumário, que, todavia, nos fez mergulhar em pensamento
nas profundezas do infinitamente pequeno, formulemos a nossa opinião. Não
obstante a perturbação que podem lançar no espírito as conclusões atuais da
Ciência acerca da constituição da matéria, não pensamos dever adotar a teoria
de que acabamos de falar e segundo a qual nada existe. Somos, entretanto,
forçados a concluir, à vista destas análises, que nos mostram as coisas tão diferentes
do modo pelo qual as concebemos habitualmente, que andamos incessantemente
enganados com a aparência dos objetos. De sorte que, levando em conta a
imperfeição dos nossos sentidos, podemos avançar, como uma espécie de axioma,
que a ilusão mais forte é a que denominamos
realidade.
[i] Este
livro foi escrito em 1890, época em que não se conhecia a desintegração
atômica. (Nota da editora.)
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