Cristianismo e espiritismo
Léon Denis
Federação Espírita Brasileira – 17ª edição
Nota complementar nº 2
Sobre a origem dos evangelhos
O Antigo
Testamento é o livro sagrado de um povo — o povo hebreu; o Evangelho é o livro
sagrado da Humanidade. As verdades essenciais que ele contém acham-se ligadas
às tradições de todos os povos e de todas as idades.
A essas verdades,
porém, muitos elementos inferiores vieram associar-se.
Nesse ponto de
vista o Evangelho pode ser comparado a um vaso precioso em que, no meio da
poeira e das cinzas, se encontram pérolas e diamantes. A reunião dessas gemas
constitui a pura doutrina cristã.
Quanto à sua
verdadeira origem, admitindo que os Evangelhos canônicos sejam obra dos autores
de que trazem os nomes, é preciso notar que dois dentre eles, Marcos e Lucas,
se limitaram a transcrever o que lhes fora dito pelos discípulos. Os outros dois, Mateus e
João, conviveram com Jesus e recolheram os seus ensinos. Os seus Evangelhos, porém, não foram escritos
senão quarenta e sessenta anos depois da morte do Mestre.
A seguinte
passagem de Mateus, 23:35 — a menos que se trate de uma interpolação bem
verossímil — prova que essa obra é posterior à tomada de Jerusalém (ano 70).
Jesus dirige esta veemente apóstrofe aos fariseus: “Para que venha sobre
vós todo o sangue inocente que se tem derramado sobre a Terra, desde o sangue
de Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vós matastes entre o
templo e o altar”.
Ora, segundo todos os historiadores
e, em particular, segundo FlaviusJosephus,141
esse assassínio foi praticado no ano 67, ou sejam trinta e quatro anos depois
da morte de Jesus.
Se atribuem ao Cristo a menção de um
fato que ele não pudera conhecer, ao que se não terão animado acerca de outros
pontos?!
Os Evangelhos não estão concordes
sobre os fatos mais notáveis atribuídos a Jesus. Assim, cada um deles refere de
modo diferente as suas derradeiras palavras. Segundo Mateus e Marcos, teriam
sido: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?142 Conforme Lucas, o Cristo, ao
expirar, teria dito: Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito,143 expressivo testemunho do amor
filial que o unia a Deus. João, finalmente, põe na sua boca estas palavras: Tudo
está cumprido.144
O mesmo se verifica relativamente à
primeira aparição de Jesus: ainda nisso os evangelistas não estão de acordo.
Mateus fala de duas mulheres que, juntas, o teriam visto. No dizer de Lucas,
foi aos dois discípulos que se dirigiam para Emaús que em primeiro lugar o
Cristo se mostrou. Marcos e João assinalam unicamente Maria Madalena como
testemunha de sua primeira aparição.145
Notemos ainda uma divergência acerca
da Ascensão: Mateus e João, os únicos companheiros de Jesus que escreveram
sobre a sua vida, dela não falam. Marcos a indica em Jerusalém (16:14 e 19), e
Lucas declara que ela teve lugar na Betânia (24: 50 e 51), no próprio dia da
ressurreição, ao passo que os Atos dos Apóstolos dizem ter sido quarenta
dias depois (Atos, 1:3).
Por outro lado, é evidente que o
último capítulo do evangelho de João não é do mesmo autor do resto da obra.
Este terminava primitivamente no
versículo 31 do capítulo 20, e o primeiro versículo que se lhe segue indica um
acréscimo.
João teria ousado dizer-se “o
discípulo que Jesus amava?”. Teria ele podido pretender que no mundo inteiro
não caberiam os livros em que se descrevessem os fatos e os gestos de Jesus?
(21:25). Se reconhecemos que foi acrescentado um capítulo inteiro a esse
evangelho, seremos levados a concluir que numerosas interpolações poderiam ter
sido feitas igualmente.
Falamos do grande número de
Evangelhos apócrifos. Deles contava Fabrício 35. Esses Evangelhos, hoje
desprezados, não eram, entretanto, destituídos de valor aos olhos da Igreja,
pois que num deles, diz Nicodemos, que ela vai buscar a crença na descida de
Jesus aos infernos, crença imposta a toda a cristandade pelo símbolo do
concílio de Niceia, e de que não fala nenhum dos Evangelhos canônicos.
Em resumo, segundo A. Sabatier,
decano da Faculdade de Teologia Protestante de Paris,146
os manuscritos originais dos Evangelhos desapareceram, sem deixar nenhum
vestígio certo na História. Foram provavelmente destruídos por ocasião da
proscrição geral dos livros cristãos, ordenada pelo imperador Deocleciano (edito
imperial de 303). Os escritos sagrados que escaparam à destruição não são, por
conseguinte, senão cópias.
Primitivamente, não tinham pontuação
esses escritos, mas, em tempo, foram divididos em perícopes, para comodidade da
leitura em público — divisões às vezes arbitrárias e diferentes entre
si. A divisão atual apareceu pela primeira vez na edição de 1551.
Apesar de todos os seus esforços, o
que a crítica pôde cientificamente estabelecer de mais antigo foram os textos
dos séculos V e IV. Não pôde remontar mais longe senão por conjeturas sempre
sujeitas à discussão.
Orígenes já se queixava amargamente
do estado dos manuscritos no seu tempo. Irineu refere que populações inteiras
acreditavam em Jesus sem a intervenção do papel e da tinta. Não se escreveu
imediatamente, porque era esperada a volta do Cristo.
141 F.
Josef: Guerra dos judeus contra os romanos. Trad. de Arnald d’Andilly,
edição de 1838, de Buchon,
livro IV, cap. XIX, p. 704.
142 Mateus,
27:46. — Marcos, 15:34.
143 Lucas,
23:46.
144 João,19:30.
145 Mateus,
28:9; Marcos, 16:9; Lucas, 24:15 e
146 Enciclopédia
das ciências religiosas, de F. Lichtenberger. João, 20:14.
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