Cristianismo
e espiritismo
Léon
Denis
Federação
Espírita Brasileira – 17 edição
Trecho VII
Os dogmas (continuação ). Os sacramentos, o culto
A explicação racional dos dogmas
pode ser estendida aos sacramentos, instituições respeitáveis, consideradas
como figuras simbólicas, como meios de adestramento moral e disciplina
religiosa, mas que se não poderiam tomar ao pé da letra, no sentido imposto
pela Igreja.
O que dissemos do pecado original
nos conduz a considerar o batismo como simples cerimônia iniciática, ou de
consagração, porque a água é impotente para limpar de suas máculas a alma.
A confirmação, ou imposição das mãos
é o ato de transmissão dos dons fluídicos, do poder do Apóstolo a outra pessoa,
que ele assim colocava em relação com o invisível.85
Esse poder não se justifica senão por merecimentos adquiridos no decurso de
anteriores existências.
A penitência e a remissão dos
pecados deram origem à confissão, pública a princípio e feita a outros
cristãos, ou diretamente a Deus; depois auricular, na Igreja Católica, e
dirigida ao padre. Este, constituído árbitro exclusivo, julgou indispensável
esse meio para se esclarecerem e discernirem os casos em que era merecida a
absolvição. Pode, ele, porém, pronunciar-se jamais com segurança? A contrição
do penitente, diz a Igreja, é necessária. Mas, como assegurar seja suficiente e
verdadeira essa contrição? A decisão do padre decorre da confissão das faltas;
é sempre certo que essa confissão seja completa?
Se consultarmos todos os textos em
que se funda a instituição da confissão,86
neles só encontramos uma coisa: é que o homem deve reconhecer as ofensas
cometidas contra o próximo; é que ele deve confessar diante de Deus as suas
faltas. Desses textos antes resulta esta consideração: a consciência individual
é sagrada; só depende de Deus diretamente. Nada aí autoriza a pretensão do
padre de se erigir em julgador.
Que diz Paulo, falando da comunhão e
dos que dela são dignos?
“Examine-se, pois, a si mesmo o
homem” ( I Coríntios, 12:28).
Ele guarda silêncio no que respeita
à confissão, em nossos dias considerada indispensável em circunstância
equivalente.
S.
João Crisóstomo, em um caso semelhante, diz:
Revelai
a Deus vossa vida; confessai vossos pecados a Deus; confessai-os ao
vosso
juiz, suplicando-lhe, senão com a voz, ao menos mentalmente, e suplicai-
lhe
de tal sorte que ele vos perdoe (Homília XXXI, sobre a Epístola aos
Hebreus).
A confissão auricular nunca foi
praticada nos primeiros tempos do Cristianismo; não foi instituída por Jesus,
mas pelos homens.
Quanto à remissão dos pecados,
deduzida destas palavras do Cristo: O que for ligado na terra será ligado
nos céus, parece que este modo de exprimir se aplica, de preferência, aos
hábitos, aos apetites materiais contraídos pelo Espírito durante a vida
terrestre, e que o prendem fluidicamente à Terra depois da morte.
Vem depois a Eucaristia, ou presença
real do corpo e do sangue de Jesus Cristo, a hóstia consagrada, o sacrifício da
cruz todos os dias renovado sobre os milhares de altares da catolicidade, à voz
do padre, e com absorção pelos fiéis do corpo vivo e sangrento do Cristo,
segundo a fórmula do catecismo do concílio de Trento: “Não é somente o corpo de
Jesus Cristo que se contém na Eucaristia, com tudo o que constitui um
verdadeiro corpo, como os ossos e os nervos; é inteiramente o próprio Jesus
Cristo”.
Donde provém esse mistério afirmado
pela Igreja? De palavras de Jesus, tomadas ao pé da letra, e que tinham caráter
puramente simbólico.
Esse caráter, ao
demais, é claramente indicado na frase por ele acrescentada: “Fazei isto, em
memória de mim”.87 Com isso afasta o
Cristo qualquer ideia de presença real. Não pretendeu, evidentemente, falar
senão do seu corpo espiritual, personificando o homem regenerado pelo espírito
de amor e caridade. A comunhão entre o ser humano e a natureza divina se opera
pela união moral com Deus; ela se realiza por enérgicos surtos da alma para seu
Pai, por aspirações constantes ao divino foco. Toda cerimônia material é vã, se
não corresponde a um estado elevado do coração e do pensamento. Preenchidas
essas condições, estabelece ao contrário, como ao começo acontecia, uma relação
misteriosa entre o homem fervoroso e o mundo invisível. Influências magnéticas
baixam a esse homem e à assembleia de que ele faz parte, e muitos experimentam
seus benefícios.
O culto religioso é uma legítima
homenagem prestada à Onipotência; é a elevação da alma para o seu Criador, a
relação natural e essencial do homem com Deus. As práticas desses cultos são de
utilidade; as aspirações que despertam, a poesia consoladora que daí deriva,
são um sustentáculo para o homem, uma proteção contra as suas próprias paixões.
Para falar, porém, ao espírito e ao coração do crente, deve o culto ser sóbrio
em suas manifestações; deve renunciar a qualquer ostentação de riqueza
material, sempre prejudicial ao recolhimento e à oração; não deve ceder o menor
lugar às superstições pueris. Simples e grande em suas formas, deve dar a
impressão da divina majestade.
Nas épocas remotas, o culto exterior
quase sempre ultrapassou os limites que lhe assina uma fé pura e elevada.
Induzido pelo fanatismo religioso resultante da sua inferioridade moral e da
sua ignorância, o homem ofereceu à Divindade sanguinolentos sacrifícios; o
padre encerrou o espírito das gerações em trama de terrificantes cerimônias.
Mudaram-se os tempos; a inteligência
se desenvolveu; suavizaram-se os costumes; mas a opressão sacerdotal
manifesta-se ainda em nossos dias, nesses ritos sob os quais a ideia de Deus se
oculta e obscurece, nesse cerimonial cujo esplendor e luxo subjugam os sentidos
e desviam o pensamento do elevado fim a que devera encaminhar-se. Não há, sob
esse fausto, nessas brilhantes pompas do Catolicismo, um espírito de domínio que
tudo procura invadir, enlaçar, e que, sob essas diferentes formas, com tais
práticas exteriores se afasta, cada vez mais, do verdadeiro ideal cristão?
É necessário, é urgente que o culto
rendido a Deus volte a ser simples e austero em seu princípio, como em suas
manifestações. Quantos progressos se realizariam se o culto, praticado na
família, permitisse a todos os seus membros, reunidos e em recolhimento,
elevar, num mesmo impulso de fé, pensamentos e corações para o Eterno; se, em
determinadas épocas, todos os crentes se reunissem para ouvir, de uma voz
autorizada, a palavra da verdade! Então, a doutrina de Jesus, melhor
compreendida, seria amada e praticada; o culto, restituído ao seu caráter
simples e sincero, exerceria ação eficacíssima nas almas.
A despeito de tudo, o culto romano
se obstina em conservar formas adotadas das antigas religiões orientais, formas
que nada mais dizem ao coração e são para os fiéis um hábito rotineiro, sem
influência em sua vida moral. Persiste em dirigir-se a Deus, há dois mil anos,
em língua que não mais se compreende, com palavras que os lábios murmuram, mas
cujo sentido já se não percebe.
Todas essas manifestações tendem a
desviar o homem do estudo aprofundado e da reflexão que nele desenvolvessem a
vida contemplativa.
As longas
orações, o cerimonial pomposo, absorvem os sentidos, mantêm a ilusão e habituam
o pensamento a funcionar mecanicamente, sem o concurso da razão.
Todas as formas do culto romano são
uma herança do passado. Suas cerimônias, seus vasos de ouro e prata, os
cânticos, a água lustral, são legados do Paganismo. Do Bramanismo tomaram o
altar, o fogo sagrado que nele arde, o pão e o licor de soma consagrados à
Divindade. Do Budismo copiaram o celibato dos padres e a hierarquia sacerdotal.
Uma lenta substituição se produziu,
na qual se encontram os vestígios das crenças desaparecidas. Os deuses pagãos
tornaram-se demônios.
As divindades
dos fenícios e dos assírios: Baal-Zebud (Belzebu), Astarot, Lúcifer, foram
transformados em potências infernais. Os demônios do Platonismo, que eram
Espíritos familiares, tornaram-se diabos. Dos heróis, das personagens veneradas
na Gália, na Grécia, na Itália, fizeram santos.
Conservaram as
festas religiosas dos antigos povos, dando-lhes apenas formas diferentes, como
a dos mortos. Por toda a parte, enxertaram no antigo culto um culto novo, que
era a sua reprodução sob outros nomes. Os próprios
dogmas cristãos se encontram na Índia e na Pérsia.
O Zend Avesta,88
como a doutrina cristã, contém as teorias da queda e da redenção, a dos anjos
bons e maus, a desobediência inicial do homem e a necessidade da salvação
mediante a graça.
Sob esse amontoado de formas
materiais e concepções envelhecidas, no meio desse incômodo legado de religiões
extintas, que constitui o Cristianismo moderno, tem-se dificuldade em
reconhecer o pensamento do seu fundador. Os autores do Evangelho não previram,
decerto, nem os dogmas, nem o culto, nem o sacerdócio. Nada de semelhante se
encontra no pensamento evangélico. Ninguém foi menos imbuído do espírito
sacerdotal do que Jesus; ninguém foi menos afeiçoado às formas, às práticas exteriores.
Tudo nele é sentimento, elevação do pensamento, pureza do coração,
simplicidade.
Nesse ponto, seus sucessores
desvirtuaram completamente as suas intenções. Induzidos pelos instintos
materiais que na Humanidade predominam, sobrecarregaram a religião cristã de um
pomposo aparato, sob o qual foi sufocada a ideia máter.
Mas vós não queirais ser chamados
mestres,89 dissera Jesus, e os papas se fazem
chamar Santidade e consentem em ser incensados. Esqueceram o exemplo do
apóstolo Pedro, quando ao centurião Cornélio, prosternado a seus pés, advertia:
Levanta-te, que eu também sou homem!90
Já não consideram que, à semelhança do Mestre, deveriam ter permanecido mansos e
humildes de coração; o orgulho os avassalou. Na Igreja se constituiu uma
imponente hierarquia, fundada não já nos dons espirituais, como nos primeiros
tempos, mas numa autoridade puramente humana. A influência do Alto, única que
dirigia a primitiva Igreja, foi sendo pouco a pouco substituída pelo princípio
de obediência passiva às regras fixadas. Cedo ou tarde, porém, o pensamento do
Mestre, restituído à sua pureza primitiva, fulgirá com um brilho novo. As
formas religiosas passarão; as instituições humanas se hão de desmoronar; a
palavra do Cristo viverá eternamente para fortalecer as almas e regenerar as
sociedades.
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