PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Cristianismo e espiritismo - Léon Denis

Cristianismo e espiritismo
Léon Denis
Federação Espírita Brasileira      17 edição
Trecho   VII    Os dogmas (continuação ). Os sacramentos, o culto

          A explicação racional dos dogmas pode ser estendida aos sacramentos, instituições respeitáveis, consideradas como figuras simbólicas, como meios de adestramento moral e disciplina religiosa, mas que se não poderiam tomar ao pé da letra, no sentido imposto pela Igreja.
         O que dissemos do pecado original nos conduz a considerar o batismo como simples cerimônia iniciática, ou de consagração, porque a água é impotente para limpar de suas máculas a alma.
         A confirmação, ou imposição das mãos é o ato de transmissão dos dons fluídicos, do poder do Apóstolo a outra pessoa, que ele assim colocava em relação com o invisível.85 Esse poder não se justifica senão por merecimentos adquiridos no decurso de anteriores existências.
            A penitência e a remissão dos pecados deram origem à confissão, pública a princípio e feita a outros cristãos, ou diretamente a Deus; depois auricular, na Igreja Católica, e dirigida ao padre. Este, constituído árbitro exclusivo, julgou indispensável esse meio para se esclarecerem e discernirem os casos em que era merecida a absolvição. Pode, ele, porém, pronunciar-se jamais com segurança? A contrição do penitente, diz a Igreja, é necessária. Mas, como assegurar seja suficiente e verdadeira essa contrição? A decisão do padre decorre da confissão das faltas; é sempre certo que essa confissão seja completa?
            Se consultarmos todos os textos em que se funda a instituição da confissão,86 neles só encontramos uma coisa: é que o homem deve reconhecer as ofensas cometidas contra o próximo; é que ele deve confessar diante de Deus as suas faltas. Desses textos antes resulta esta consideração: a consciência individual é sagrada; só depende de Deus diretamente. Nada aí autoriza a pretensão do padre de se erigir em julgador.
            Que diz Paulo, falando da comunhão e dos que dela são dignos?
            “Examine-se, pois, a si mesmo o homem” ( I Coríntios, 12:28).
       Ele guarda silêncio no que respeita à confissão, em nossos dias considerada indispensável em circunstância equivalente.

S. João Crisóstomo, em um caso semelhante, diz:
Revelai a Deus vossa vida; confessai vossos pecados a Deus; confessai-os ao   
vosso juiz, suplicando-lhe, senão com a voz, ao menos mentalmente, e suplicai-
lhe de tal sorte que ele vos perdoe (Homília XXXI, sobre a Epístola aos Hebreus).

            A confissão auricular nunca foi praticada nos primeiros tempos do Cristianismo; não foi instituída por Jesus, mas pelos homens.
           Quanto à remissão dos pecados, deduzida destas palavras do Cristo: O que for ligado na terra será ligado nos céus, parece que este modo de exprimir se aplica, de preferência, aos hábitos, aos apetites materiais contraídos pelo Espírito durante a vida terrestre, e que o prendem fluidicamente à Terra depois da morte.
         Vem depois a Eucaristia, ou presença real do corpo e do sangue de Jesus Cristo, a hóstia consagrada, o sacrifício da cruz todos os dias renovado sobre os milhares de altares da catolicidade, à voz do padre, e com absorção pelos fiéis do corpo vivo e sangrento do Cristo, segundo a fórmula do catecismo do concílio de Trento: “Não é somente o corpo de Jesus Cristo que se contém na Eucaristia, com tudo o que constitui um verdadeiro corpo, como os ossos e os nervos; é inteiramente o próprio Jesus Cristo”.
          Donde provém esse mistério afirmado pela Igreja? De palavras de Jesus, tomadas ao pé da letra, e que tinham caráter puramente simbólico.
Esse caráter, ao demais, é claramente indicado na frase por ele acrescentada: “Fazei isto, em memória de mim”.87 Com isso afasta o Cristo qualquer ideia de presença real. Não pretendeu, evidentemente, falar senão do seu corpo espiritual, personificando o homem regenerado pelo espírito de amor e caridade. A comunhão entre o ser humano e a natureza divina se opera pela união moral com Deus; ela se realiza por enérgicos surtos da alma para seu Pai, por aspirações constantes ao divino foco. Toda cerimônia material é vã, se não corresponde a um estado elevado do coração e do pensamento. Preenchidas essas condições, estabelece ao contrário, como ao começo acontecia, uma relação misteriosa entre o homem fervoroso e o mundo invisível. Influências magnéticas baixam a esse homem e à assembleia de que ele faz parte, e muitos experimentam seus benefícios.
            O culto religioso é uma legítima homenagem prestada à Onipotência; é a elevação da alma para o seu Criador, a relação natural e essencial do homem com Deus. As práticas desses cultos são de utilidade; as aspirações que despertam, a poesia consoladora que daí deriva, são um sustentáculo para o homem, uma proteção contra as suas próprias paixões. Para falar, porém, ao espírito e ao coração do crente, deve o culto ser sóbrio em suas manifestações; deve renunciar a qualquer ostentação de riqueza material, sempre prejudicial ao recolhimento e à oração; não deve ceder o menor lugar às superstições pueris. Simples e grande em suas formas, deve dar a impressão da divina majestade.
            Nas épocas remotas, o culto exterior quase sempre ultrapassou os limites que lhe assina uma fé pura e elevada. Induzido pelo fanatismo religioso resultante da sua inferioridade moral e da sua ignorância, o homem ofereceu à Divindade sanguinolentos sacrifícios; o padre encerrou o espírito das gerações em trama de terrificantes cerimônias.
            Mudaram-se os tempos; a inteligência se desenvolveu; suavizaram-se os costumes; mas a opressão sacerdotal manifesta-se ainda em nossos dias, nesses ritos sob os quais a ideia de Deus se oculta e obscurece, nesse cerimonial cujo esplendor e luxo subjugam os sentidos e desviam o pensamento do elevado fim a que devera encaminhar-se. Não há, sob esse fausto, nessas brilhantes pompas do Catolicismo, um espírito de domínio que tudo procura invadir, enlaçar, e que, sob essas diferentes formas, com tais práticas exteriores se afasta, cada vez mais, do verdadeiro ideal cristão?
            É necessário, é urgente que o culto rendido a Deus volte a ser simples e austero em seu princípio, como em suas manifestações. Quantos progressos se realizariam se o culto, praticado na família, permitisse a todos os seus membros, reunidos e em recolhimento, elevar, num mesmo impulso de fé, pensamentos e corações para o Eterno; se, em determinadas épocas, todos os crentes se reunissem para ouvir, de uma voz autorizada, a palavra da verdade! Então, a doutrina de Jesus, melhor compreendida, seria amada e praticada; o culto, restituído ao seu caráter simples e sincero, exerceria ação eficacíssima nas almas.
            A despeito de tudo, o culto romano se obstina em conservar formas adotadas das antigas religiões orientais, formas que nada mais dizem ao coração e são para os fiéis um hábito rotineiro, sem influência em sua vida moral. Persiste em dirigir-se a Deus, há dois mil anos, em língua que não mais se compreende, com palavras que os lábios murmuram, mas cujo sentido já se não percebe.
            Todas essas manifestações tendem a desviar o homem do estudo aprofundado e da reflexão que nele desenvolvessem a vida contemplativa.
As longas orações, o cerimonial pomposo, absorvem os sentidos, mantêm a ilusão e habituam o pensamento a funcionar mecanicamente, sem o concurso da razão.
            Todas as formas do culto romano são uma herança do passado. Suas cerimônias, seus vasos de ouro e prata, os cânticos, a água lustral, são legados do Paganismo. Do Bramanismo tomaram o altar, o fogo sagrado que nele arde, o pão e o licor de soma consagrados à Divindade. Do Budismo copiaram o celibato dos padres e a hierarquia sacerdotal.
            Uma lenta substituição se produziu, na qual se encontram os vestígios das crenças desaparecidas. Os deuses pagãos tornaram-se demônios.
As divindades dos fenícios e dos assírios: Baal-Zebud (Belzebu), Astarot, Lúcifer, foram transformados em potências infernais. Os demônios do Platonismo, que eram Espíritos familiares, tornaram-se diabos. Dos heróis, das personagens veneradas na Gália, na Grécia, na Itália, fizeram santos.
Conservaram as festas religiosas dos antigos povos, dando-lhes apenas formas diferentes, como a dos mortos. Por toda a parte, enxertaram no antigo culto um culto novo, que era a sua reprodução sob outros nomes. Os próprios dogmas cristãos se encontram na Índia e na Pérsia.
            O Zend Avesta,88 como a doutrina cristã, contém as teorias da queda e da redenção, a dos anjos bons e maus, a desobediência inicial do homem e a necessidade da salvação mediante a graça.
          Sob esse amontoado de formas materiais e concepções envelhecidas, no meio desse incômodo legado de religiões extintas, que constitui o Cristianismo moderno, tem-se dificuldade em reconhecer o pensamento do seu fundador. Os autores do Evangelho não previram, decerto, nem os dogmas, nem o culto, nem o sacerdócio. Nada de semelhante se encontra no pensamento evangélico. Ninguém foi menos imbuído do espírito sacerdotal do que Jesus; ninguém foi menos afeiçoado às formas, às práticas exteriores. Tudo nele é sentimento, elevação do pensamento, pureza do coração, simplicidade.
          Nesse ponto, seus sucessores desvirtuaram completamente as suas intenções. Induzidos pelos instintos materiais que na Humanidade predominam, sobrecarregaram a religião cristã de um pomposo aparato, sob o qual foi sufocada a ideia máter.
          Mas vós não queirais ser chamados mestres,89 dissera Jesus, e os papas se fazem chamar Santidade e consentem em ser incensados. Esqueceram o exemplo do apóstolo Pedro, quando ao centurião Cornélio, prosternado a seus pés, advertia: Levanta-te, que eu também sou homem!90 Já não consideram que, à semelhança do Mestre, deveriam ter permanecido mansos e humildes de coração; o orgulho os avassalou. Na Igreja se constituiu uma imponente hierarquia, fundada não já nos dons espirituais, como nos primeiros tempos, mas numa autoridade puramente humana. A influência do Alto, única que dirigia a primitiva Igreja, foi sendo pouco a pouco substituída pelo princípio de obediência passiva às regras fixadas. Cedo ou tarde, porém, o pensamento do Mestre, restituído à sua pureza primitiva, fulgirá com um brilho novo. As formas religiosas passarão; as instituições humanas se hão de desmoronar; a palavra do Cristo viverá eternamente para fortalecer as almas e regenerar as sociedades.





85  Atos, 8:17; 19:6, etc.
86  Mateus, 3:6; Lucas, 18:13; Tiago, Epíst., 5:16; João, I Epíst., 1:9; etc.
87  Lucas, 22:19; I Coríntios, 11:23 a 25.
88  Emílio Burnouf. A ciência das religiões, p. 222.
89  Mateus, 23:8.
90  Atos, 10:26.

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