O
problema do ser, da destino e da dor
Léon Denis
Federação
Espírita Brasileira – 32ª edição
Introdução
Mas, para a democracia
socialista, o homem interior, o homem da consciência individual não existe; a
coletividade o absorve por inteiro. Os princípios que ela adota não são mais do
que uma negação de toda filosofia elevada e de toda causa superior. Não se
procura outra coisa senão conquistar direitos; entretanto, o gozo dos direitos
não pode ser obtido sem a prática dos deveres. O direito sem o dever, que o
limita e corrige, só pode produzir novas dilacerações, novos sofrimentos.
Eis por que o impulso formidável
do Socialismo não faria senão deslocar os apetites, as ambições, os
sofrimentos, e substituir as opressões do passado por um despotismo novo, mais
intolerável ainda.
Já podemos medir a extensão dos
desastres causados pelas doutrinas negativas. O Determinismo, o Monismo, o
Materialismo, negando a liberdade humana e a responsabilidade, minam as
próprias bases da Ética universal. O mundo moral não é mais que um anexo da
Fisiologia, isto é, o reinado, a manifestação da força cega e irresponsável. Os
espíritos de escol
professam o Niilismo metafísico,
e a massa humana, o povo, sem crenças, sem princípios fixos, está entregue a
homens que lhe exploram as paixões e especulam com suas ambições.
O Positivismo, apesar de ser
menos absoluto, não é menos funesto em suas consequências. Por suas teorias do
desconhecido, suprime ele as noções de fim e de larga evolução. Toma o homem na
fase atual de sua vida, simples fragmento de seu destino, e o impede de ver
para diante e para trás de si. Método estéril e perigoso, feito, parece, para
cegos de espírito, e que se tem proclamado muito falsamente como a mais bela
conquista do espírito moderno.
Tal é o atual estado da
sociedade. O perigo é imenso e, se alguma grande renovação espiritualista e
científica não se produzisse, o mundo soçobraria na incoerência e na confusão.
Nossos homens de governo sentem
já o que lhes custa viver numa sociedade em que as bases essenciais da moral
estão abaladas, em que as sanções são factícias ou impotentes, em que tudo se
funde, até a noção elementar do bem e do mal.
As igrejas, é verdade, apesar de
suas fórmulas antiquadas e de seu espírito retrógrado, agrupam ainda ao redor
de si muitas almas sensíveis, mas tornaram-se incapazes de conjurar o perigo,
pela impossibilidade em que se colocaram de fornecer uma definição precisa do
destino humano e do Além, apoiada em fatos probantes e bem estabelecidos. A
religião, que teria, sobre esse ponto capital, o mais alto interesse em se
pronunciar, conserva-se no vago.
A Humanidade, cansada dos dogmas
e das especulações sem provas, mergulhou no materialismo, ou na indiferença.
Não há salvação para o pensamento, senão numa doutrina baseada sobre a
experiência e o testemunho dos fatos.
Donde virá essa doutrina? Do
abismo em que nos arrastamos, que poder nos livrará? Que ideal novo virá dar ao
homem a confiança no futuro e o fervor pelo bem? Nas horas trágicas da História,
quando tudo parecia desesperado, nunca faltou o socorro. A alma humana não se
pode afundar inteiramente e perecer. No momento em que as crenças do passado se
velam, uma concepção nova da vida e do destino, baseada na ciência dos fatos,
reaparece. A grande tradição revive sob formas engrandecidas, mais novas e mais
belas. Mostra a todos um futuro cheio de esperanças e de promessas. Saudemos o
novo reino da Ideia, vitoriosa da Matéria, e trabalhemos para preparar-lhe o
caminho.
A tarefa a cumprir é grande. A
educação do homem deve ser inteiramente refeita. Essa educação, já o vimos, nem
a Universidade, nem a Igreja estão em condições de a fornecer, pois que já não
possuem as sínteses necessárias para esclarecerem a marcha das novas gerações.
Uma só doutrina pode oferecer essa síntese, a do Espiritualismo científico; já
ela sobe no horizonte do mundo intelectual e parece que há de iluminar o
futuro.
A essa filosofia, a essa ciência,
livre, independente, emancipada de toda pressão oficial, de todo compromisso
político, as descobertas contemporâneas trazem cada dia novas e preciosas
contribuições. Os fenômenos do magnetismo, da radioatividade, da telepatia, são
aplicações de um mesmo princípio, manifestações de uma mesma lei, que rege
conjuntamente o ser e o Universo.
Ainda alguns anos de labor
paciente, de experimentação conscienciosa, de pesquisas perseverantes, e a nova
educação terá encontrado sua fórmula científica, sua base essencial. Esse
acontecimento será o maior fato da História, desde o aparecimento do
Cristianismo.
A educação, sabe-se, é o mais
poderoso fator do progresso, pois contém em gérmen todo o futuro. Mas, para ser
completa, deve inspirar-se no estudo da vida sob suas duas formas alternantes,
visível e invisível, em sua plenitude, em sua evolução ascendente para os cimos
da Natureza e do pensamento.
Os preceptores da Humanidade têm,
pois, um dever imediato a cumprir.
É o de repor o Espiritualismo na
base da educação, trabalhando para refazer o homem interior e a saúde moral. É
necessário despertar a alma humana adormecida por uma retórica funesta;
mostrar-lhe seus poderes ocultos, obrigá-la a ter consciência de si mesma, a
realizar seus gloriosos destinos.
A ciência moderna analisou o
mundo exterior; suas penetrações no Universo objetivo são profundas; isso será
sua honra e sua glória; mas nada sabe ainda do universo invisível e do mundo
interior. É esse o império ilimitado que lhe resta conquistar. Saber por que
laços o homem se liga ao conjunto, descer às sinuosidades misteriosas do ser, onde
a sombra e a luz se misturam, como na caverna de Platão, percorrer-lhe os
labirintos, os redutos secretos, auscultar o eu normal e o eu profundo, a
consciência e a subconsciência; não há estudo mais necessário. Enquanto as
escolas e as academias não o tiverem introduzido em seus programas, nada terão
feito pela educação definitiva da Humanidade.
Já, porém, vemos surgir e
constituir-se uma psicologia maravilhosa e imprevista, de onde vão derivar uma
nova concepção do ser e a noção de uma lei superior que abarca e resolve todos
os problemas da evolução e do movimento transformador.
* * *
Um tempo se acaba; novos tempos
se anunciam. A hora em que estamos é uma hora de transição e de parto doloroso.
As formas esgotadas do passado empalidecem-se e se desfazem para dar lugar a
outras, a princípio vagas e confusas, mas que se precisam cada vez mais. Nelas
se esboça o pensamento crescente da Humanidade.
O espírito humano está em
trabalho, por toda parte, sob a aparente decomposição das ideias e dos princípios;
por toda parte, na Ciência, na Arte, na Filosofia e até no seio das religiões,
o observador atento pode verificar que uma lenta e laboriosa gestação se
produz. A Ciência, essa sobretudo, lança em profusão sementes de ricas
promessas. O século que começa será o das potentes eclosões.
As formas e as concepções do
passado, dizíamos, já não são suficientes.
Por mais respeitável que pareça
essa herança, não obstante o sentimento piedoso com que se podem considerar os
ensinamentos legados por nossos pais, compreende-se que esse ensinamento não
foi suficiente para dissipar o mistério sufocante do porquê da vida.
Pode-se, entretanto, em nossa
época, viver e agir com mais intensidade do que nunca; mas pode-se viver e agir
plenamente, sem se ter consciência do fim a atingir? O estado d’alma
contemporâneo pede, reclama uma ciência, uma arte, uma religião de luz e de
liberdade, que venham dissipar-lhe as dúvidas, libertá-lo das velhas servidões
e das misérias do pensamento, guiá-lo para horizontes radiosos a que se sente
levado pela própria natureza e pelo impulso de forças irresistíveis.
Fala-se muito de progresso; mas
que se entende por progresso? É uma palavra vazia e sonora, na boca de oradores
pela maior parte materialistas, ou tem um sentido determinado? Vinte
civilizações têm passado pela Terra, iluminando com seus alvores a marcha da
Humanidade. Seus grandes focos brilharam na noite dos séculos; depois,
extinguiram-se. E o homem não discerne ainda, atrás dos horizontes limitados de
seu pensamento, o além sem limites aonde o leva o destino. Impotente para
dissipar o mistério que o cerca, estraga suas forças nas obras da Terra e foge
aos esplendores de sua tarefa espiritual, tarefa que fará sua verdadeira
grandeza.
A fé no progresso não caminha sem
a fé no futuro, no futuro de cada um e de todos. Os homens não progridem e não
se adiantam, senão crendo no futuro e marchando com confiança, com certeza para
o ideal entrevisto.
O progresso não consiste somente
nas obras materiais, na criação de máquinas poderosas e de toda a ferramenta
industrial; do mesmo modo, não consiste em descobrir processos novos de Arte,
de Literatura ou formas de eloquência. Seu mais alto objetivo é empolgar,
atingir a ideia primordial, a ideia-mãe que há de fecundar toda a vida humana,
a fonte elevada e pura de onde hão de dimanar conjuntamente as verdades, os
princípios e os sentimentos que inspirarão as obras de peso e as nobres ações.
É tempo de o compreender: a
civilização não se pode engrandecer, a sociedade não pode subir, se um pensamento
cada vez mais elevado, se uma luz mais viva não vierem inspirar, esclarecer os
espíritos e tocar os corações, renovando-os. Somente a ideia é mãe da ação.
Somente a vontade de realizar a plenitude do ser, cada vez melhor, cada vez
maior, nos pode conduzir aos cimos longínquos em que a Ciência, a Arte, toda a
obra humana, numa palavra, achará sua expansão, sua regeneração.
Tudo no-lo diz: o Universo é
regido pela lei da evolução; é isso o que entendemos pela palavra progresso. E
nós, em nosso princípio de vida, em nossa alma, em nossa consciência, estamos
para sempre submetidos a essa lei. Não se pode desconhecer, hoje, essa força,
essa lei soberana, ela conduz a alma e suas obras, através do infinito do tempo
e do espaço, a um fim cada vez mais elevado; mas essa lei não é realizável
senão por nossos esforços.
Para fazer obra útil, para
cooperar na evolução geral e recolher todos os seus frutos, é preciso, antes de
tudo, aprender a discernir, a reconhecer a razão, a causa e o fim dessa
evolução, saber aonde ela conduz, a fim de participar, na plenitude das forças
e das faculdades que dormitam em nós, dessa ascensão grandiosa.
Nosso dever é traçar a trajetória
à Humanidade futura, de que fazemos ainda parte integrante, como no-lo ensinam
a comunhão das almas, a revelação dos grandes Instrutores invisíveis e como a
Natureza o ensina também por suas milhares de vozes, pelo renovamento perpétuo
de todas as coisas, àqueles que a sabem estudar e compreender.
Vamos, pois, para o futuro, para
a vida sempre renascente, pela via imensa que nos abre um Espiritualismo
regenerado! Fé do passado, ciências, filosofias, religiões, iluminai-vos com
uma
chama nova; sacudi vossos velhos
sudários e as cinzas que os cobrem. Escutai as vozes reveladoras do túmulo;
elas nos trazem uma renovação do pensamento com os segredos do Além, que o
homem tem necessidade de conhecer para melhor viver, melhor agir e melhor
morrer!
Paris, 1908.
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