MÚSICA ESPÍRITA
[...] O silêncio que guardei sobre a questão que me dirigiu o mestre da Doutrina Espírita foi explicado. Era conveniente, antes de abordar esse difícil tema, recolher-me, lembrar-me e condensar os elementos que estavam em minha mão. Eu não tinha que estudar música, tinha apenas que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar uma ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está concluído, e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.
A harmonia é difícil de definir. Muitas vezes confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas, e das vibrações dos instrumentos reprodutores desse arranjo. Mas a harmonia não é isto, como a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa. Assim se dá com a harmonia. Ela resulta de um arranjo musical, é um efeito igualmente superior à sua causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.
Pode-se conceber a luz sem chama e compreende-se a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que possui a alma; quanto mais desenvolvido esse sentido, tanto melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma: é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; nós as possuímos em razão dos esforços feitos para adquiri-las.
Se comparo a luz e a harmonia, é para me fazer compreender melhor e, também, porque essas duas sublimes satisfações da alma são filhas de Deus e, por conseguinte, irmãs.
A harmonia do Espaço é tão complexa, tem tantos graus que eu conheço, e muitos mais ainda que me são ocultos no éter infinito, que aquele que estiver colocado num certo nível de percepções é como que tomado de admiração ao contemplar essas harmonias diversas que, se fossem reunidas, constituiriam a mais insuportável cacofonia; ao passo que, ao contrário, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia, que choca um Espírito de percepções sutis, deslumbra um Espírito de percepções grosseiras; e quando ao Espírito inferior é dado deleitar-se nas delícias das harmonias superiores, é tomado pelo êxtase e a prece o penetra; o encantamento o arrasta às esferas elevadas do mundo moral; vive uma vida superior à sua e desejaria continuar a viver sempre assim. Mas quando a harmonia deixa de o penetrar, desperta, ou melhor, adormece. Em todo o caso, volta à realidade de sua situação, e dos lamentos que deixa escapar por ter descido se exala uma prece ao Eterno, a pedir-lhe forças para de novo subir. Aí tem ele um grande motivo de emulação.
Não tentarei explicar os efeitos musicais que o Espírito produz atuando sobre o éter. O que é certo é que o Espírito produz os sons que queira, e que ele não pode querer o que não sabe. Ora, aquele que compreende muito, que tem a harmonia em si, que dela está saturado, que goza, ele próprio, o seu sentido íntimo, esse nada impalpável, essa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e deseja. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que este último traz em si a bem dizer se concretiza; exala-se doce e suave como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou rebenta como o raio, ou se lamenta como a brisa; é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; é entrecortada como o soluço, ou uniforme como a relva; é desordenada como uma catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato, ou estrondeia como uma torrente. Ora tem a agreste aspereza das montanhas, ora o frescor de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica como a noite, jovial e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando ela chega a este último termo, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao deslumbramento aquele mesmo que a produz ou concebe.
Oh! comparação! comparação! Por que se é obrigado a empregar-te? Por que se dobrar às tuas necessidades degradantes e tomar, à natureza tangível, imagens grosseiras para fazermos compreensível a sublime harmonia na qual se deleita o Espírito? E, ainda, a despeito das comparações, não se consegue dar ideia dessa abstração, sentimento quando causa, sensação quando se torna efeito.
O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que se quitou intelectualmente; ambos gozam constantemente da propriedade inalienável que conquistaram. O Espírito inteligente que ensina sua ciência aos que ignoram experimenta a felicidade de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que traz em si experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o ouvem.
A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira, o deslumbra; a segunda, o esclarece; a terceira, o eleva. Possuídas em toda a plenitude, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as possuís! Descei às nossas trevas e iluminai a nossa caminhada; mostrai-nos o caminho que tomastes, a fim de que sigamos as vossas pegadas!
Quando penso que esses Espíritos, cuja existência mal posso compreender, são seres finitos, átomos, em face do eterno Senhor do Universo, minha razão se confunde ao pensar na grandeza de Deus e na felicidade infinita que Ele goza em si mesmo, pelo só fato de ser infinita a sua pureza, visto que tudo que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplender pela virtude, que não produzirá a fonte eterna e infinita de onde foi tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a haurir em sua pureza tanta felicidade, que ideia se há de ter da que o Criador tira da sua pureza absoluta? Problema eterno!
O compositor que concebe a harmonia a traduz na grosseira linguagem chamada música; concretiza sua ideia e a escreve. O artista aprende a forma e toma o instrumento que lhe permita exprimir a ideia. Acionado pelo instrumento, o ar a transporta ao ouvido do ouvinte, e o ouvido a transmite à alma. Mas o compositor foi impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma língua apropriada; por sua vez o executante não compreendeu toda a ideia escrita, e o instrumento indócil de que se serve não lhe permite traduzir tudo quanto compreendeu. O ouvido é afetado pelo ar grosseiro que o cerca, e a alma, enfim, recebe, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia desabrochada na alma do maestro. Essa ideia era o seu sentimento íntimo. Embora corrompida pelos agentes da instrumentação e da percepção, ela sempre causa sensações nos que a ouvem traduzida; essas sensações são a harmonia.
A música as produziu; elas são efeito da música. Esta é posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. No compositor o sentimento é a harmonia; no ouvinte a sensação também é harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Transmite-a mais ou menos deformada, conforme seja bem ou mal executada, do mesmo modo que o refletor envia melhor ou pior a luz, conforme seja mais ou menos brilhante e polido, do mesmo modo que o médium exprime mais ou menos bem os pensamentos do Espírito, conforme seja mais ou menos maleável. E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação, que se sabe que é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do Espaço.
Entre vós, tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil: vós tendes o ar, nós temos o éter; tendes o órgão que obstrui e vela; em nós a percepção é direta e nada a vela. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, fala sem intermediário e na linguagem que exprime todas as concepções. E, contudo, essas harmonias têm a mesma fonte que a do Sol; assim como a luz da Lua é o reflexo da luz do Sol, a harmonia da Terra não passa de reflexo da harmonia do Espaço. A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Só pode compreendê-la quem a possui e só a possui quem a tenha adquirido. O homem jovial não pode explicar a sua alegria; o medroso não pode explicar a sua timidez; podem expor os fatos que esses sentimentos provocam, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos ficam inexplicados. O fato que causa alegria em um nada produzirá sobre outro; o objeto que ocasiona o temor em um determinará a coragem em outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários; isto não se dá em física, mas se dá em metafísica, porque o sentimento é propriedade da alma e as almas diferem de sensibilidade entre si, de impressionabilidade, de liberdade.
A música, que é a causa secundária da harmonia percebida, penetra e transporta um, deixando frio e indiferente outro. É que o primeiro está em condição de receber a impressão produzida pela harmonia, ao passo que o segundo se acha em estado oposto; escuta o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega a entediar-se e a adormecer, enquanto aquele se entusiasma e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado que aquele que ela não pode penetrar; sua alma está mais apta para sentir; desprende- se mais facilmente e a harmonia a ajuda a se desprender; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. Deve-se concluir daí que a música é essencialmente moralizadora, pois que leva a harmonia às almas e a harmonia as eleva e engrandece.
A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral é reconhecida por todo o mundo; mas a razão dessa influência geralmente é ignorada. Sua explicação está inteiramente neste fato: a harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe num certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que é privado desse sentimento a ele é trazido gradativamente; também acaba por se deixar penetrar e arrastar ao mundo ideal, no qual esquece, por um instante, os prazeres inferiores que prefere à divina harmonia.
E agora, se considerarmos que a harmonia sai do conceito do Espírito, deduziremos que a música exerce salutar influência sobre a alma, e a alma que a concebe também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa que tem a paixão do bem, do belo, do grande e que adquiriu harmonia produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais endurecidas e de comovê-las. Se o compositor é terra a terra, como expressará a virtude que desdenha, o belo que ignora e o grande que não compreende? Suas composições refletirão seus gostos sensuais, sua leviandade, sua indolência. Ora serão licenciosas, ora obscenas, ora cômicas, ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem e os perverterão, em vez de os melhorar.
Moralizando os homens, o Espiritismo pode exercer, assim, uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que transfundirão suas virtudes ao fazerem ouvidas suas composições.
Rir-se-á menos, chorar-se-á mais; a hilaridade cederá lugar à emoção, a fealdade à beleza e o cômico à grandiosidade.
Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo terá preparado para receber facilmente a harmonia, ouvindo música séria, sentirão um verdadeiro encanto; desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem deixados pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores dessa ordem, porque, sem ouvintes, nada ganharão, e é para ganhar que eles se corrompem.
Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música!
Como não seria assim? Seu advento mudará a arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força a conduzirá por toda parte onde haja homens para amar, para elevar-se e compreender. Tornar-se-á o ideal e objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas irão buscar nele suas inspirações e ele lhas fornecerá, porque é rico, porque é inesgotável.O Espírito do maestro Rossini virá, em nova existência, continuar a arte que ele considera a primeira de todas. O Espiritismo será seu símbolo e o inspirador de suas composições. – ROSSINI. (Médium: Sr. Nivart.)
[...] O silêncio que guardei sobre a questão que me dirigiu o mestre da Doutrina Espírita foi explicado. Era conveniente, antes de abordar esse difícil tema, recolher-me, lembrar-me e condensar os elementos que estavam em minha mão. Eu não tinha que estudar música, tinha apenas que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar uma ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está concluído, e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.
A harmonia é difícil de definir. Muitas vezes confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas, e das vibrações dos instrumentos reprodutores desse arranjo. Mas a harmonia não é isto, como a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa. Assim se dá com a harmonia. Ela resulta de um arranjo musical, é um efeito igualmente superior à sua causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.
Pode-se conceber a luz sem chama e compreende-se a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que possui a alma; quanto mais desenvolvido esse sentido, tanto melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma: é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; nós as possuímos em razão dos esforços feitos para adquiri-las.
Se comparo a luz e a harmonia, é para me fazer compreender melhor e, também, porque essas duas sublimes satisfações da alma são filhas de Deus e, por conseguinte, irmãs.
A harmonia do Espaço é tão complexa, tem tantos graus que eu conheço, e muitos mais ainda que me são ocultos no éter infinito, que aquele que estiver colocado num certo nível de percepções é como que tomado de admiração ao contemplar essas harmonias diversas que, se fossem reunidas, constituiriam a mais insuportável cacofonia; ao passo que, ao contrário, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia, que choca um Espírito de percepções sutis, deslumbra um Espírito de percepções grosseiras; e quando ao Espírito inferior é dado deleitar-se nas delícias das harmonias superiores, é tomado pelo êxtase e a prece o penetra; o encantamento o arrasta às esferas elevadas do mundo moral; vive uma vida superior à sua e desejaria continuar a viver sempre assim. Mas quando a harmonia deixa de o penetrar, desperta, ou melhor, adormece. Em todo o caso, volta à realidade de sua situação, e dos lamentos que deixa escapar por ter descido se exala uma prece ao Eterno, a pedir-lhe forças para de novo subir. Aí tem ele um grande motivo de emulação.
Não tentarei explicar os efeitos musicais que o Espírito produz atuando sobre o éter. O que é certo é que o Espírito produz os sons que queira, e que ele não pode querer o que não sabe. Ora, aquele que compreende muito, que tem a harmonia em si, que dela está saturado, que goza, ele próprio, o seu sentido íntimo, esse nada impalpável, essa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e deseja. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que este último traz em si a bem dizer se concretiza; exala-se doce e suave como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou rebenta como o raio, ou se lamenta como a brisa; é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; é entrecortada como o soluço, ou uniforme como a relva; é desordenada como uma catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato, ou estrondeia como uma torrente. Ora tem a agreste aspereza das montanhas, ora o frescor de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica como a noite, jovial e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando ela chega a este último termo, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao deslumbramento aquele mesmo que a produz ou concebe.
Oh! comparação! comparação! Por que se é obrigado a empregar-te? Por que se dobrar às tuas necessidades degradantes e tomar, à natureza tangível, imagens grosseiras para fazermos compreensível a sublime harmonia na qual se deleita o Espírito? E, ainda, a despeito das comparações, não se consegue dar ideia dessa abstração, sentimento quando causa, sensação quando se torna efeito.
O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que se quitou intelectualmente; ambos gozam constantemente da propriedade inalienável que conquistaram. O Espírito inteligente que ensina sua ciência aos que ignoram experimenta a felicidade de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que traz em si experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o ouvem.
A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira, o deslumbra; a segunda, o esclarece; a terceira, o eleva. Possuídas em toda a plenitude, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as possuís! Descei às nossas trevas e iluminai a nossa caminhada; mostrai-nos o caminho que tomastes, a fim de que sigamos as vossas pegadas!
Quando penso que esses Espíritos, cuja existência mal posso compreender, são seres finitos, átomos, em face do eterno Senhor do Universo, minha razão se confunde ao pensar na grandeza de Deus e na felicidade infinita que Ele goza em si mesmo, pelo só fato de ser infinita a sua pureza, visto que tudo que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplender pela virtude, que não produzirá a fonte eterna e infinita de onde foi tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a haurir em sua pureza tanta felicidade, que ideia se há de ter da que o Criador tira da sua pureza absoluta? Problema eterno!
O compositor que concebe a harmonia a traduz na grosseira linguagem chamada música; concretiza sua ideia e a escreve. O artista aprende a forma e toma o instrumento que lhe permita exprimir a ideia. Acionado pelo instrumento, o ar a transporta ao ouvido do ouvinte, e o ouvido a transmite à alma. Mas o compositor foi impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma língua apropriada; por sua vez o executante não compreendeu toda a ideia escrita, e o instrumento indócil de que se serve não lhe permite traduzir tudo quanto compreendeu. O ouvido é afetado pelo ar grosseiro que o cerca, e a alma, enfim, recebe, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia desabrochada na alma do maestro. Essa ideia era o seu sentimento íntimo. Embora corrompida pelos agentes da instrumentação e da percepção, ela sempre causa sensações nos que a ouvem traduzida; essas sensações são a harmonia.
A música as produziu; elas são efeito da música. Esta é posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. No compositor o sentimento é a harmonia; no ouvinte a sensação também é harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Transmite-a mais ou menos deformada, conforme seja bem ou mal executada, do mesmo modo que o refletor envia melhor ou pior a luz, conforme seja mais ou menos brilhante e polido, do mesmo modo que o médium exprime mais ou menos bem os pensamentos do Espírito, conforme seja mais ou menos maleável. E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação, que se sabe que é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do Espaço.
Entre vós, tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil: vós tendes o ar, nós temos o éter; tendes o órgão que obstrui e vela; em nós a percepção é direta e nada a vela. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, fala sem intermediário e na linguagem que exprime todas as concepções. E, contudo, essas harmonias têm a mesma fonte que a do Sol; assim como a luz da Lua é o reflexo da luz do Sol, a harmonia da Terra não passa de reflexo da harmonia do Espaço. A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Só pode compreendê-la quem a possui e só a possui quem a tenha adquirido. O homem jovial não pode explicar a sua alegria; o medroso não pode explicar a sua timidez; podem expor os fatos que esses sentimentos provocam, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos ficam inexplicados. O fato que causa alegria em um nada produzirá sobre outro; o objeto que ocasiona o temor em um determinará a coragem em outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários; isto não se dá em física, mas se dá em metafísica, porque o sentimento é propriedade da alma e as almas diferem de sensibilidade entre si, de impressionabilidade, de liberdade.
A música, que é a causa secundária da harmonia percebida, penetra e transporta um, deixando frio e indiferente outro. É que o primeiro está em condição de receber a impressão produzida pela harmonia, ao passo que o segundo se acha em estado oposto; escuta o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega a entediar-se e a adormecer, enquanto aquele se entusiasma e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado que aquele que ela não pode penetrar; sua alma está mais apta para sentir; desprende- se mais facilmente e a harmonia a ajuda a se desprender; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. Deve-se concluir daí que a música é essencialmente moralizadora, pois que leva a harmonia às almas e a harmonia as eleva e engrandece.
A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral é reconhecida por todo o mundo; mas a razão dessa influência geralmente é ignorada. Sua explicação está inteiramente neste fato: a harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe num certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que é privado desse sentimento a ele é trazido gradativamente; também acaba por se deixar penetrar e arrastar ao mundo ideal, no qual esquece, por um instante, os prazeres inferiores que prefere à divina harmonia.
E agora, se considerarmos que a harmonia sai do conceito do Espírito, deduziremos que a música exerce salutar influência sobre a alma, e a alma que a concebe também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa que tem a paixão do bem, do belo, do grande e que adquiriu harmonia produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais endurecidas e de comovê-las. Se o compositor é terra a terra, como expressará a virtude que desdenha, o belo que ignora e o grande que não compreende? Suas composições refletirão seus gostos sensuais, sua leviandade, sua indolência. Ora serão licenciosas, ora obscenas, ora cômicas, ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem e os perverterão, em vez de os melhorar.
Moralizando os homens, o Espiritismo pode exercer, assim, uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que transfundirão suas virtudes ao fazerem ouvidas suas composições.
Rir-se-á menos, chorar-se-á mais; a hilaridade cederá lugar à emoção, a fealdade à beleza e o cômico à grandiosidade.
Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo terá preparado para receber facilmente a harmonia, ouvindo música séria, sentirão um verdadeiro encanto; desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem deixados pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores dessa ordem, porque, sem ouvintes, nada ganharão, e é para ganhar que eles se corrompem.
Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música!
Como não seria assim? Seu advento mudará a arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força a conduzirá por toda parte onde haja homens para amar, para elevar-se e compreender. Tornar-se-á o ideal e objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas irão buscar nele suas inspirações e ele lhas fornecerá, porque é rico, porque é inesgotável.O Espírito do maestro Rossini virá, em nova existência, continuar a arte que ele considera a primeira de todas. O Espiritismo será seu símbolo e o inspirador de suas composições. – ROSSINI. (Médium: Sr. Nivart.)
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