O Espiritismo a caminho do domínio público
Há 200 anos nascia o codificador da doutrina que já reúne 40 milhões de brasileiros
Josmar Leite (Jornalista)
Ligo o gravador. Primeira pergunta: qual a sua idade? Resposta: 59 anos nesta encarnação. Assim começa a conversa com o militar da reserva Valdomiro Halvei Barcellos, adepto da doutrina espírita desde 1981. Assim como mais 1 milhão de gaúchos e cerca de 40 milhões em todo o país, Valdomiro procura vivenciar os ensinamentos registrados por Hyppolyte Leon Denizard Rivail, também conhecido como Allan Kardec, o codificador do Espiritismo.
Eventos relacionados à comunicação com os mortos, entretanto, são muito anteriores ao filósofo francês. Eles remetem à cultura de povos antigos como o Egito ou a Índia. Ainda segundo os especialistas no tema, a Bíblia, em seus textos originais tem claras comprovações da reencarnação. Mais recentemente, alguns fatos despertaram os interesses de estudiosos, levando a uma pesquisa mais apurada. A literatura espírita relata que no ano de
Para não confundir o novo campo de estudo com sua trajetória já consagrada nas áreas da educação, filosofia e psicologia, Hyppolyte Rivail adota o nome de Allan Kardec, que teria sido seu nome em outra vida, quando fez parte da civilização Druida, na antiga Gália, atual França. Considerado de caráter empírico, O Livro dos Espíritos é o primeiro do Pentateuco espírita. Depois são publicados escritos de cunho filosóficos como O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, A Gênese e O céu e o Inferno. Nestas obras, Kardec aprofunda o estudo em questões centrais para a doutrina que se iniciava.
A noção que Valdomiro tem de estar a 59 anos encarnado é essencial para compreender o sentido da vida segundo o Espiritismo. Segundo a doutrina, o espírito é imortal e passa por tantas encarnações quantas forem necessárias, até concluir o processo de aperfeiçoamento. Esse pensamento obedece a um princípio muito conhecido da física, onde para cada ação surge uma reação de igual intensidade e em sentido contrário. Para um espírita, tudo o que se faz ou deixa-se de fazer numa vida conta pontos para a purificação da alma. Valdomiro acredita que “a colheita é livre, mas a reação é impositiva” (considerando ser um dos responsáveis pela matéria, na condição de entrevistado devo esclarecer que quis afirmar: “a semeadura é livre, porém a colheita é impositiva”). Segundo ele, “o estágio evolutivo em que nos encontramos é decorrência do nosso mérito ou necessidade”. Isso quer dizer que se uma pessoa desfruta de uma condição, seja pobreza ou riqueza; saúde ou doença; paz ou tribulação é porque merece ou precisa estar assim. Valdomiro conta que já viveu um episódio que acredita ter origem numa vida pregressa. Em 1983 teve um grande problema de saúde. Os médicos basearam todas as possibilidades numa rotina desregrada, cheia de vícios. Porém, Valdomiro desmentia tudo porque praticava exercícios, não bebia, não fumava e não tinha nenhum hábito que justificasse os sintomas: “a causa devia estar no passado”.
O militar da reserva afirma ter tido uma criação sempre com influências religiosas. Estudou em escolas confessionais, mas desistiu “porque entrava em constantes conflitos com os padres”. Além disso, passou também por centros de Umbanda e até pelo próprio Espiritismo. Valdomiro diz que comprou O Livro dos Espíritos num sebo e que o lia no bonde. Mas somente em 1981, quando estava prestando serviço na cidade mineira de Três Corações, é que foi conhecer melhor uma Sociedade Espírita. Foi então que decidiu que seria praticante da doutrina até que aparecesse outra resposta aos seus questionamentos. “Como até hoje não apareceu, vou ficando”, explica. O Espiritismo como princípio religioso que explica os sentidos mais profundos da vida humana parece ser o motivo mais poderoso para que tantas pessoas recorram a ele. A presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS), Gládis Pedersen afirma que nenhuma outra religião dá respostas tão racionais e convincentes como o Espiritismo. Além disso, é uma doutrina que pode ser compartilhada com outra religião. Outro atrativo da doutrina para Pedersen é a ausência de ritos, paramentos, hierarquia e dogmas. Segundo ela, a fé tem que ser raciocinada.
A FERGS surgiu em fevereiro de 1921. Hoje tem representação em todo o estado. O organograma é bem planejado e pelo entusiasmo da presidente, as atividades parecem estar a pleno vapor. A federação gaúcha está ligada a Federação Espírita Brasileira (FEB) e hoje conta com 13 regionais no território gaúcho. A estimativa da entidade é que existam 1 milhão de espíritas no estado. Só Porto Alegre tem 60 centros registrados. Num deles, localizado no centro da cidade, estão concentradas uma grande quantidade de atividades. Às terças-feiras, por exemplo, existe a seção de Preces e Irradiações. Neste dia, os freqüentadores se dirigem a um salão e ouvem orações proferidas por médiuns experientes. No dia em que estive no local, um dos pedidos era para que os espíritos ajudassem a cada um dos presentes a ser uma pessoa mais atenciosa dentro de seu próprio lar. Questionava a voz, por meio de um sistema de som, de que adiantava “ser um espírita atuante na comunidade e prestar grandes serviços à obra, mas estar descuidado com a família?”. O público presente era bem heterogêneo e das mais variadas faixas etárias. Logo após, começaria um encontro de estudo de O Livro dos Espíritos. Poucas pessoas estavam presentes naquela noite, quando uma senhora que parecia dominar muito bem o assunto explicava pontos da obra de Kardec durante uma hora.
Pelos depoimentos ouvidos, uma das grandes buscas do espírita é a formação. Para que alguém se declare conhecedor da doutrina é preciso muito estudo. Segundo a presidente da federação, são necessários 6 anos para que se conclua todos os níveis de aprendizagem que os centros oferecem. Desta afirmação aparece uma outra característica do movimento: a alta escolaridade. Pedersen explica que nos congressos em que participa, é muito alto o número de doutores, professores universitários e intelectuais. Ela mesma é pedagoga e por muito tempo foi docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Toda a sua trajetória acadêmica esteve voltada para a educação e é essa também sua meta à frente da federação. “Temos muitos cursos a respeito da comprovação da reencarnação, da mediunidade, da educação moral infanto-juvenil”, conta. Entretanto, isso parece ser uma prerrogativa de quem decide perseverar na doutrina, porque nos encontros comuns, é grande a quantidade de pessoas muito simples e que participam somente para receber uma palavra de conforto, mas não se aprofundam. A constatação veio da diferença de público entre a seção de orações e a reunião de estudo do livro.
Uma das principais formas de sustento da FERGS é a editora. Nesta área, existe um grande rigor da instituição. Todas as obras que chegam passam por uma profunda avaliação de fidelidade doutrinária. Pedersen afirma que em se tratando de Espiritismo aparecem muitos charlatões. “O livro espírita é o que mais vende em qualquer livraria ou feira de livro, por isso muitos aparecem aqui com intuito meramente comercial e somos enfáticos em recusar”. Ela afirma que a federação é muito procurada porque mantém um eficiente sistema de distribuição. Segundo a presidente, até ameaça de morte já aconteceu de parte de um autor preterido. “Os livros de médiuns autênticos sempre levam ao crescimento e ao esclarecimento maior da doutrina”, explica. Um dos representantes mais famosos é Chico Xavier. No Brasil ele foi responsável por aprofundar as questões fundamentais do Espiritismo. Por meio dele, falavam espíritos como o do médico brasileiro André Luis. Juntos escreveram 10 livros.
Outra questão intrigante em relação ao relacionamento com os espíritos é a cura espiritual. Valdomiro relata um caso em que ainda jovem sentiu a dor típica da apendicite. Na época, seus pais possuíam grande crença nos métodos místicos e procuraram um médium conhecido na cidade em que residiam. O homem fez uma marca em seu corpo na altura das dores e raspou a região com uma colher. Mandou-os para casa e recomendou repouso e chá com dieta rigorosa. Passado algum tempo, Valdomiro expeliu grande quantidade de substâncias e se diz curado até hoje. Na sua interpretação foi um procedimento magnético “o que ocorreu foi a troca de moléculas ruins por sãs. Houve o componente espiritual do médium curador, agindo com entidades espirituais”. Perguntado se esta passou a ser uma prática corrente para ele, explica que todo espírita deve confiar na medicina convencional por ser uma dádiva de Deus e que os médicos são as pessoas capacitadas para tratar as enfermidades do corpo humano. “Somente quando as causas são inexplicáveis é que se recomenda o tratamento espiritual”, destaca.
Mas será que os malefícios que causamos nesta vida só podem ser recuperados numa próxima? Os praticantes da doutrina afirmam que Deus sempre dá a oportunidade de resgatar as nossas faltas ainda nesta vida. Valdomiro acredita que “não precisamos resgatar apenas pela dor, é possível e recomendável, recuperar também pelo amor”. Segundo ele, quando pessoas se dedicam abnegadamente em prol do bem dos outros, possivelmente estejam resgatando passos em falso desta ou de outras vidas. O militar da reserva crê também que certas fatalidades podem ser encaradas de outra maneira. Por exemplo, “se uma pessoa perde a mão, ela pode vir a descobrir que ela veio a essa vida para perder o braço. Se tivesse se esforçado um pouco mais, talvez tivesse sido só a ponta do dedo”, brinca ele.
O Espiritismo enquanto movimento, vive uma situação de projeção. Recentemente, a Associação Médica Espírita Brasileira e a entidade que reúne os magistrados de mesma orientação se organizaram para pressionar o Congresso Nacional, exigindo a realização de um plebiscito para saber qual a opinião da população em relação do aborto, prática condenada pelos espíritas. Para os médicos adeptos da doutrina de Kardec, a vida humana é intocável e só é admitida em casos extremos, como de risco de vida para a mãe. Nisso, concordam com a Igreja Católica, tendo inclusive o apoio da CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Esse momento de expansão confirma as próprias previsões do codificador da doutrina. Segundo Allan Kardec, o Espiritismo passaria pelos primeiros tempos em que seria extremamente contestado. Após a fase de implantação, viria uma fase filosófica, depois o período religioso e um quarto estágio, quando viraria de domínio social. Segundo se constata tudo anda conforme previsto.
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