I
- Artigo de Allan Kardec:
SERMÕES
SOBRE O ESPIRITISMO
Pregados
na catedral de Metz, nos dias 27, 28 e 29 de maio de 1863, pelo reverendo padre
Letierce, da Companhia de Jesus. Refutados por um espírita de Metz e precedidos
de considerações sobre a loucura espírita. (*)
(*)
Paris, 1863, Livraria Didier, 35, quai des Augustins; Ledoyen, palais-Royal;
Metz, livraria Linden, 1, rue Pierre-Hardie.
Embora
não conheçamos pessoalmente o autor deste opúsculo, podemos dizer que é obra de
um espírita esclarecido e sincero. Estamos contentes por ver a defesa do
Espiritismo tomada por mãos hábeis, que sabem aliar a força do raciocínio à
moderação, que é o apanágio da verdadeira força.
Os
argumentos dos adversários aí são combatidos com uma lógica à qual não sabemos
qual outra poderiam opor, porque só há uma lógica séria, aquela cujas deduções
nenhum lugar deixam à réplica, e achamos que a do autor está neste caso.
Sem
dúvida, com ou sem razão, sempre se pode replicar, porquanto há criaturas com
as quais nunca se diz a última palavra, ainda que se tratasse de lhes provar
que há sol ao meio-dia; mas não é destes que se trata de ter razão, pouco
importando que estejam ou não convencidos de seu erro.
Também
não é a estes que nos dirigimos, mas ao público, juiz em última instância das
causas boas ou más. Há no espírito das massas um bom-senso que pode falhar nos
indivíduos isolados, mas cujo conjunto é como a resultante das forças
intelectuais e do senso comum.
Em
nossa opinião, a brochura em questão reúne as vantagens do fundo e da forma,
isto é, à justeza do raciocínio alia a correção e a elegância do estilo, que
jamais prejudica coisa alguma e torna a leitura de qualquer escrito mais
atraente e mais fácil. Não duvidamos que este escrito seja acolhido por todos
os espíritas com a simpatia que merece. Nós o recomendamos com toda a confiança
e sem restrições. Contribuindo para sua propagação, os espíritas prestarão
serviço à causa.
Allan
Kardec
Revista
Espírita de Setembro de 1863
II - Artigo de Allan Kardec:
SERMÕES
SOBRE O ESPIRITISMO
É
sempre uma satisfação ver adeptos sérios entrarem na liça quando, à lógica da
argumentação, aliam calma e moderação, da qual nunca nos devemos afastar, mesmo
contra os que não usam os mesmos processos a nosso respeito.
Cumprimentamos
o autor deste opúsculo por ter sabido reunir essas duas qualidades em seu
interessante e muito consciencioso trabalho que, não temos dúvida, será acolhido
com a atenção que merece.
A
carta posta no início da brochura é um testemunho de simpatia que não poderíamos
reconhecer melhor do que a transcrevendo textualmente, pois é uma prova da
maneira pela qual ele compreende a doutrina, bem como os pensamentos seguintes,
que toma por epígrafe:
“Cremos
que haja fatos que não sejam visíveis ao olho, nem tangíveis à mão; que nem o
microscópio, nem o escalpelo podem alcançar, por mais perfeitos que se os
suponham; que igualmente escapem ao gosto, ao olfato e ao ouvido e que, no
entanto, são susceptíveis de ser constatados com absoluta certeza (Ch.
Jouffroy, prefácio dos Esquisses de philosophie morale, pág. 5).
“Não
creiais em qualquer Espírito; experimentai se os Espíritos vêm de
Deus.”(Evangelho).
“Senhor
e caro mestre,
“Dignai-vos
aceitar a dedicatória desta modesta defesa em favor do Espiritismo, deste grito
de indignação contra os ataques dirigidos contra nossa sublime moral? Seria
para mim o mais seguro testemunho de que estas páginas são ditadas por este
espírito de moderação que diariamente admiramos em vossos escritos e que nos
deveria guiar em todas as nossas lutas. Aceitai-a como singelo ensaio de um dos
vossos recentes adeptos, como profissão de fé de um verdadeiro crente.
Se
meus esforços forem felizes, atribuirei o seu sucesso ao vosso elevado
patrocínio; se minha voz incompetente não encontrar eco, ao Espiritismo não
faltarão outros defensores e terei para mim, com a satisfação da consciência, a
felicidade de ter sido aprovado pelo apóstolo imortal de nossa filosofia.”
Extraímos
da brochura a passagem seguinte, de um dos sermões do reverendo padre Letierce,
a fim de dar uma idéia da força de sua lógica.
“Nada
há de chocante para a razão em admitir, num certo limite, a comunicação dos
Espíritos dos mortos com os vivos; tal comunicação é perfeitamente compatível
com a natureza da alma humana, encontrando-se numerosos exemplos no Evangelho e
na Vida dos santos; mas eram santos, eram apóstolos.
Para
nós, pobres pecadores que, nos precipícios deslizantes da corrupção, não
precisaríamos senão de uma mão socorrista para nos reconduzir ao bem, não é um
sacrilégio, um insulto à justiça divina ir pedir aos Espíritos bons, que Deus
espalhou à nossa volta, conselhos e preceitos para a nossa instrução moral e
filosófica?
Não
é uma audácia ímpia pedir ao Criador que nos envie anjos de guarda para que nos
lembrem incessantemente a observação de suas leis, a caridade, o amor aos
nossos semelhantes e nos ensinar o que devemos fazer, na medida de nossas
forças, para chegar o mais rapidamente possível a esse grau de perfeição que
eles próprios atingiram?
“Esse
apelo que fazemos às almas dos justos, em nome da bondade de Deus, só é ouvido
pelas almas dos maus, em nome das potências infernais. Sim, os Espíritos se
comunicam conosco, mas são os Espíritos dos condenados; suas comunicações e
seus preceitos, é verdade, são semelhantes aos que nos poderiam ditar os mais
puros anjos; todos os seus discursos respiram as mais sublimes virtudes, das
quais as menores devem ser para nós um ideal de perfeição, que mal podemos
atingir nesta vida. Mas é apenas uma armadilha para melhor nos atrair, um mel
cobrindo o veneno com o qual o demônio quer matar nossa alma.
“Com
efeito, as almas dos mortos, segundo Allan Kardec, são de três classes: as que
chegaram ao estado de Espíritos puros, as que estão no caminho da perfeição e
as almas dos maus.
Por
sua natureza, as primeiras não podem vir ao nosso apelo; seu estado de pureza
torna impossível qualquer comunicação com as almas dos homens, encerradas em
tão grosseiro envoltório; aliás, que viriam fazer na Terra? pregar exortações que
não poderíamos compreender?
As
segundas têm muito a trabalhar para o seu aperfeiçoamento moral para perder
tempo vindo conversar conosco; ainda não são as que nos assistem em nossas
reuniões. O que é, então, que nos resta? Eu o disse, as almas dos condenados, e
estas não precisam ser rogadas para vir; sempre dispostas a aproveitar o nosso
erro e a nossa necessidade de instrução, dirigem-se em massa junto a nós, para
com elas nos arrastar ao abismo onde as mergulhou a justa punição de Deus.”
Allan
Kardec
Revista
Espírita de Outubro de 1863
Prefácio
da obra:
O
livro Sermões sobre o Espiritismo pregados na catedral de Metz refutados por um
espírita de Metz, publicado em 1863, pela Didier (de Paris) e Verronais (de
Metz), é histórico e assinala bem algumas polêmicas que ocorriam por ocasião do
trabalho do Codificador Allan Kardec. Metz é cidade da França próxima à
fronteira com Luxemburgo e Alemanha.
O
Codificador viveu no Século XIX – época das luzes que provocou grandes
descobertas e teorias que modificaram o modo de vida do homem sobre a Terra,
sua própria concepção e o papel que ele representa no planeta e no universo.
Simultaneamente foi um período de muitas polêmicas e choques na vida política e
religiosa da França.
Para
situarmos o contexto do ambiente da religião na França, lembramos que após a
Revolução Francesa, no período do Terror, Robespierre impôs a religião
racionalista e presidiu a cerimônia de introdução de uma bailarina na Catedral
de Notre Dame, para caracterizar o estabelecimento do culto da razão.
Poucos
anos depois o cônsul Napoleão Bonaparte estabeleceu uma nova relação com a
Igreja Católica, tida como oficial até a Revolução, e assinou com o Papa Pio
VII a Concordata de 1801, acordo que visava a restauração da Igreja Católica na
França pós-revolução. O Catolicismo seria "a religião da grande maioria
dos franceses", porém não mais a religião oficial, em respeito ao
Protestantismo que se expandia.
Em
1846 Pio IX assume o papado, e exerceu um dos mais longos pontificados da
história, até o ano de 1878. Portanto contemporâneo do trabalho do Codificador.
Pio IX condenou diversas proposições que contrariavam a visão católica na
época. Entre estas, condenava as ideologias do panteísmo, naturalismo,
racionalismo, indiferentismo, socialismo, comunismo, maçonaria judaísmo,
Igrejas que se apresentavam como cristãs e se propunham a explicar a Bíblia e
várias outras formas de liberalismo religioso consideradas incompatíveis com a
religião católica. Era tipicamente um conservador.
No
seio da própria igreja católica da França surgem inquietações, ou, numa outra
ótica, esforços importantes por parte de religiosos como: Félicité Robert de
Lamennais (1782-1854), liberal que advogava a separação do Estado da Igreja, a
liberdade de consciência, educação e imprensa. Jean-Baptiste-Henri Lacordaire
(1802-1861), vigário da Catedral de Notre Dame, que escrevia claramente sobre
“o mundo dos corpos e o mundo dos espíritos” e defendia que a “união da
liberdade e do Cristianismo seria a única possibilidade de salvação do futuro”,
escreveu à Sra. Svetchine, em 20 de junho de 1853, a propósito das mesas
girantes:
“Também,
mediante essa divulgação, Deus quer talvez proporcionar o desenvolvimento das
forças espirituais ao desenvolvimento das forças materiais, a fim de que o
homem não esqueça, ante as maravilhas da mecânica, que há dois mundos contidos
um no outro, o mundo dos corpos e o mundo dos Espíritos.” Evidentemente que
Lamennais e Lacordaire foram punidos pelo Vaticano.
Várias
polêmicas se disseminavam no seio da igreja católica francesa. Motivado por
discordâncias sobre o dogma da imaculada Conceição e sobre celibatarismo, o
padre Jean-Louis Verger assassinou o arcebispo de Paris Marie Auguste Dominique
Sibour, em janeiro de 1857.
Aos
9 de outubro de 1861, aconteceu o famoso “auto de fé”, em Barcelona (Espanha),
quando foram queimados em praça pública centenas de obras de autoria de Allan
Kardec.
Esse
foi o contexto vivido por Allan Kardec por ocasião da redação das Obras Básicas
do Espiritismo.
Com
o título de Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo Alan Kardec lançou em
Paris em abril de 1864, o livro que interpreta o ensino moral do Cristo. Um mês
depois esta foi incluída no Index librorum prohibitorum, a lista de publicações
proibidas pela Igreja Católica. Este título foi alterado na segunda edição para
O Evangelho segundo o Espiritismo.
Pelo
cenário sintetizado, pode-se entender a preocupação do padre R.P. Letierce, em
proferir sermões na cidade de Metz, combatendo o Espiritismo. Ele se inseria
dentro do contexto católico predominante da época.
Por
outro lado, o “espírita de Metz” elaborou argumentação firme e coerente com a
Doutrina Espírita para refutar o padre Letierce. Para a época, eram
preocupações pertinentes para um espírita que convivia com a fase inicial da
elaboração e difusão da Doutrina Espírita. As principais questões levantadas
pelo pároco de Metz eram: relacionar Espiritismo como causa de loucura; o
Espiritismo como maldade; a tibieza dos espíritas; a “influência dos espíritos do
inferno”; a não aceitação do dogma da eternidade das penas; ser uma heresia...
Ao
mesmo tempo, no seio do próprio catolicismo francês, já surgiam manifestações
significativas, de contemporâneos de Kardec. O abade Marauzeau, em carta
dirigida a Allan Kardec: "Mostrai ao homem que ele é imortal. Nada vos
pode melhor secundar nessa nobre tarefa do que a comprovação dos Espíritos de
além-túmulo e suas manifestações. Só com isso vireis em auxílio da religião,
empenhando ao seu lado os combates de Deus". O abade Leçanu, em seu livro
História de Satanás anotou: "Observando-se as máximas de O Livro dos
Espíritos, de Allan Kardec, faz-se o bastante para se tomar santo na
Terra".
As
acusações do pároco ficaram completamente ultrapassadas pelos fatos em seguida
à publicação do livro em foco, e destacando apenas produções do século XIX: a
própria sequência de outras obras de Kardec, como O evangelho segundo o
espiritismo (que contém mensagens de Lamennais e de Lacordaire), O céu e o
inferno (que contém manifestações do padre Verger).
A
gênese e a riquíssima coleção da Revista Espírita; obras de vários autores e de
pesquisadores daquele século: Léon Denis, Alexandre Aksakof, Cesare Lombroso,
William Crookes, Oliver Lodge, Charles Richet, William James, Gabriel Delanne, e
outros. Ainda no século XIX o médico brasileiro Adolfo Bezerra de Menezes
publicou o livro A loucura sob novo prisma.
O
livro do “espírita de Metz” tem grande valor histórico e, acima de tudo,
registra a coragem de um homem que não temia as pressões e perseguições
religiosas e demonstrava profunda fidelidade ao nascente Espiritismo.
São
Paulo, novembro de 2017
Antonio
Cesar Perri de Carvalho
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