É PRECISO
QUEIMAR OS NAVIOS
Andréa Ferreira
O grande
escritor Eduardo Galeano, num momento de inspiração divinal, enunciou os seguintes
dizeres: “Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para
mudar o que somos”.
Durante muito
tempo, tal frase soou para mim como uma utopia distante, porque, embora os
lampejos de lucidez, sempre que o meu homem novo clamava por manifestar-se,
minha total fidelidade aos vícios e ao deleite que o homem velho proporciona
impediram-me de continuar...
E assim, feliz
com minha escravidão espontânea, ia “tocando” a vida, enganando-me, achando-me
uma pessoa “até boazinha”, tentando aplicar os princípios cristãos na periferia
de mim mesma. Hoje, analisando essa situação confrangedora, penso: como é que
alguém que nem conhece um pouquinho de si mesmo pode sequer achar que já está
num processo de reforma íntima?
Um dia, um fato
inusitado prorrompeu um processo devastador em minha existência. Cheia de tédio
de mim mesma, farta de meus enganos, encontrei-me numa situação em que tive que
colocar todos os meus valores à prova. De repente, esta nova condição despiu-me
diante de mim mesma, porque cruamente mostrou-me quem eu era, do que era capaz,
apesar da capa de cristandade que me envolvia.
Fiquei
desatinada. Pela primeira vez, diante de um problema a resolver, vi que não
tinha as reservas morais que julgava haver conquistado.
A primeira
reação diante dessa perturbação interior foi lamber as feridas, cultivando
rancor do mundo e da Humanidade em geral. Depois vieram os questionamentos:
muitas atividades na doutrina que, absolutamente, eu não desempenhava com o
coração, muitas “amizades” que não contribuíam para o meu aperfeiçoamento
moral, muitos valores a serem renovados.
Então, o que
era natural: comecei a questionar a mim mesma!
Incrível é que
geralmente as coisas acontecem dessa maneira. As situações que nos circundam
são sempre as responsáveis pelas nossas penúrias morais, até que nos
conscientizemos de que, quase sempre, os únicos culpados pelas diversas crises
por que passamos somos nós mesmos.
De fato,
percebi que nem a mim mesma eu conhecia e isso refletiu-se em tudo o que me
rondava. Observei que as pessoas tinham de mim uma opinião que não correspondia
à verdade. E o que é pior: vi que eu tinha de mim uma visão irreal.
Procurei todos
os livros que trouxessem lenitivos ao coração. Li diversas obras de filósofos,
poetas e pensadores. Enfim, num momento (quem sabe?) de inspiração, deparei-me
com a resposta que Santo Agostinho tão sabidamente proferiu à pergunta 919, “a”
de “O Livro dos Espíritos”.
Nele, o nobre
espírito nos elucida sobre o caminho para conhecer a si mesmo. A resposta
formulada é tão singela quanto profunda. Em síntese, ele nos passa a sua
própria experiência quando, ao fim de cada dia, interrogava à própria
consciência se havia faltado com o seu dever, ou se alguém tinha qualquer
motivo para dele se queixar. O esclarecimento que nos traz é de uma beleza tão
comovedora que qualquer tentativa de minha parte em explicitá-la poderia
comprometer sua grandiosidade e esplendor.
Basta que diga
que, a partir daquele dia, procurei, embora vacilante, aplicar tal descoberta à
minha vida. Não é fácil mudar. Quase sempre não temos forças para nadar “contra
a corrente”, quando encontramos tanto conforto em continuarmos como estamos.
Aos poucos,
descobri outras pessoas com os mesmos questionamentos e anseios. Começamos
então a trocar experiências e observávamos que cada um, a sua maneira,
decifrava seus enigmas, porque tal “viagem” é extremamente individual.
O engraçado é
que eu sempre ouvi pessoas referirem-se à necessidade de reforma íntima, mas
quando não se está maduro o suficiente, não há como entender a profundidade
deste assunto. Alguns (hoje percebo isso), não tinham qualquer ideia do que
falavam, porque só quem iniciou um processo como o sugerido por Santo Agostinho
compreende o que implica o conhecer a si mesmo.
Nesta época,
li uma lição de Humberto Rohden, da magnífica obra “De Alma para Alma” que
complementou o pouco que havia assimilado sobre o assunto, Na lição
“Queimar Navios”. O autor nos conta que
Fernando Cortez, há mais de quatro séculos, ao aportar na América, mandou que
se queimassem todos os navios, para que ninguém se sentisse tentado a retornar
ao país de origem. Concluí que, na vida, muitos de nós não ousa sem reserva
lançar-se “aos mares ignotos de Deus” – e perder de vista “os verdes litorais
da própria vida”. Recomenda que lutemos por nossos ideais sem voltar os olhos
para trás, sem vacilações, evitando que, diante do primeiro percalço, corramos
para o regaço de nosso homem velho, temendo a plenitude do eu.
Até hoje, não
consegui queimar navio. Quando penso que suprimi um defeito, eis que ele me vem
à tona, acuando-me. No entanto, estou na luta. Hoje sei que vou chegar onde
quero. Com certeza, serei quem eu quero. Até que eu chegue “lá”, porém, recuso-me
a mentir para mim mesma. Quero ter a dimensão exata do que sou e do que faço.
Atualmente, entendo que não há pressa. Nós entramos com a persistência e a
vontade de mudar, mas o tempo, e Deus, que nunca nos abandona, se encarregam do
resto.
Para
finalizar, creio que a descoberta do caminho para si mesmo é muito particular.
Com certeza, nenhum será igual ao meu, mas se eu puder contribuir, de alguma maneira, com alguém que
já se encontra em conflito interior, regozijo-me que assim seja. Muitos não
necessitam passar por uma experiência traumática para conscientizarem-se;
outros, só desse modo entenderão. Não importa, quando se trata de encontro
consigo mesmo, não há absolutos. O importante é que optemos por vivermos a
plenitude de nós mesmos, quando o mundo inteiro nos convida a vivermos a
mentira.
(Pub: Revista Espírita Allan Kardec n- 32, Out/Dez-1996)
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