PENTATEUCO KARDEQUIANO

PENTATEUCO  KARDEQUIANO
OBRAS BÁSICAS

domingo, julho 27, 2014



                             É   PRECISO  QUEIMAR  OS  NAVIOS
                                                                      Andréa Ferreira


     O grande escritor Eduardo Galeano, num momento de inspiração divinal, enunciou os seguintes dizeres: “Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos”.
     Durante muito tempo, tal frase soou para mim como uma utopia distante, porque, embora os lampejos de lucidez, sempre que o meu homem novo clamava por manifestar-se, minha total fidelidade aos vícios e ao deleite que o homem velho proporciona impediram-me de continuar...
     E assim, feliz com minha escravidão espontânea, ia “tocando” a vida, enganando-me, achando-me uma pessoa “até boazinha”, tentando aplicar os princípios cristãos na periferia de mim mesma. Hoje, analisando essa situação confrangedora, penso: como é que alguém que nem conhece um pouquinho de si mesmo pode sequer achar que já está num processo de reforma íntima?
     Um dia, um fato inusitado prorrompeu um processo devastador em minha existência. Cheia de tédio de mim mesma, farta de meus enganos, encontrei-me numa situação em que tive que colocar todos os meus valores à prova. De repente, esta nova condição despiu-me diante de mim mesma, porque cruamente mostrou-me quem eu era, do que era capaz, apesar da capa de cristandade que me envolvia.
     Fiquei desatinada. Pela primeira vez, diante de um problema a resolver, vi que não tinha as reservas morais que julgava haver conquistado.
     A primeira reação diante dessa perturbação interior foi lamber as feridas, cultivando rancor do mundo e da Humanidade em geral. Depois vieram os questionamentos: muitas atividades na doutrina que, absolutamente, eu não desempenhava com o coração, muitas “amizades” que não contribuíam para o meu aperfeiçoamento moral, muitos valores a serem renovados.
     Então, o que era natural: comecei a questionar a mim mesma!
     Incrível é que geralmente as coisas acontecem dessa maneira. As situações que nos circundam são sempre as responsáveis pelas nossas penúrias morais, até que nos conscientizemos de que, quase sempre, os únicos culpados pelas diversas crises por que passamos somos nós mesmos.
     De fato, percebi que nem a mim mesma eu conhecia e isso refletiu-se em tudo o que me rondava. Observei que as pessoas tinham de mim uma opinião que não correspondia à verdade. E o que é pior: vi que eu tinha de mim uma visão irreal.
     Procurei todos os livros que trouxessem lenitivos ao coração. Li diversas obras de filósofos, poetas e pensadores. Enfim, num momento (quem sabe?) de inspiração, deparei-me com a resposta que Santo Agostinho tão sabidamente proferiu à pergunta 919, “a” de “O Livro dos Espíritos”.
     Nele, o nobre espírito nos elucida sobre o caminho para conhecer a si mesmo. A resposta formulada é tão singela quanto profunda. Em síntese, ele nos passa a sua própria experiência quando, ao fim de cada dia, interrogava à própria consciência se havia faltado com o seu dever, ou se alguém tinha qualquer motivo para dele se queixar. O esclarecimento que nos traz é de uma beleza tão comovedora que qualquer tentativa de minha parte em explicitá-la poderia comprometer sua grandiosidade e esplendor.
     Basta que diga que, a partir daquele dia, procurei, embora vacilante, aplicar tal descoberta à minha vida. Não é fácil mudar. Quase sempre não temos forças para nadar “contra a corrente”, quando encontramos tanto conforto em continuarmos como estamos.
     Aos poucos, descobri outras pessoas com os mesmos questionamentos e anseios. Começamos então a trocar experiências e observávamos que cada um, a sua maneira, decifrava seus enigmas, porque tal “viagem” é extremamente individual.
     O engraçado é que eu sempre ouvi pessoas referirem-se à necessidade de reforma íntima, mas quando não se está maduro o suficiente, não há como entender a profundidade deste assunto. Alguns (hoje percebo isso), não tinham qualquer ideia do que falavam, porque só quem iniciou um processo como o sugerido por Santo Agostinho compreende o que implica o conhecer a si mesmo.
     Nesta época, li uma lição de Humberto Rohden, da magnífica obra “De Alma para Alma” que complementou o pouco que havia assimilado sobre o assunto, Na lição “Queimar   Navios”. O autor nos conta que Fernando Cortez, há mais de quatro séculos, ao aportar na América, mandou que se queimassem todos os navios, para que ninguém se sentisse tentado a retornar ao país de origem. Concluí que, na vida, muitos de nós não ousa sem reserva lançar-se “aos mares ignotos de Deus” – e perder de vista “os verdes litorais da própria vida”. Recomenda que lutemos por nossos ideais sem voltar os olhos para trás, sem vacilações, evitando que, diante do primeiro percalço, corramos para o regaço de nosso homem velho, temendo a plenitude do eu.
     Até hoje, não consegui queimar navio. Quando penso que suprimi um defeito, eis que ele me vem à tona, acuando-me. No entanto, estou na luta. Hoje sei que vou chegar onde quero. Com certeza, serei quem eu quero. Até que eu chegue “lá”, porém, recuso-me a mentir para mim mesma. Quero ter a dimensão exata do que sou e do que faço. Atualmente, entendo que não há pressa. Nós entramos com a persistência e a vontade de mudar, mas o tempo, e Deus, que nunca nos abandona, se encarregam do resto.
     Para finalizar, creio que a descoberta do caminho para si mesmo é muito particular. Com certeza, nenhum será igual ao meu, mas se eu puder  contribuir, de alguma maneira, com alguém que já se encontra em conflito interior, regozijo-me que assim seja. Muitos não necessitam passar por uma experiência traumática para conscientizarem-se; outros, só desse modo entenderão. Não importa, quando se trata de encontro consigo mesmo, não há absolutos. O importante é que optemos por vivermos a plenitude de nós mesmos, quando o mundo inteiro nos convida a vivermos a mentira.
                                                (Pub: Revista Espírita Allan Kardec n- 32, Out/Dez-1996)


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