CARTAS E
CRÔNICAS
PSICOGRAFIA DE
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
PELO ESPÍRITO
IRMÃO X
Espécie de ilha
amena, cercada pelas correntes do comodismo.
Encasquetara o
ponto de vista de que ninguém devia, a título algum, falar a outrem de
princípios religiosos que abraçasse, e prosseguiu, vida afora, repelindo
qualquer palpite que o induzisse à renovação.
Era justamente a
esse homem que fôramos confortar, dentro da noite.
Mota vinha de
perder a companhia de Licínio Fonseca, recentemente desencarnado, o amigo que
lhe partilhara 26 anos de serviço no foro. Ambos amadurecidos na existência e
na profissão, após os 60 de idade, eram associados invariáveis de trabalho e de
luta. Juntos sempre nos atos jurídicos, negócios, interesses, férias e
excursões.
Sem o colega
ideal, baqueara Mota em terrível angústia.
Trancava-se em
lágrimas, no aposento íntimo, ansiando vê-lo em espírito... E tanto rogou a
concessão, em preces ocultas, que ali nos achávamos, em comissão de quatro
cooperadores, com instruções para levá-lo ao companheiro.
Desligado
cautelosamente do corpo, que se acomodara sob a influência do sono, embora não
nos percebesse o apoio direto, foi Joaquim transportado à presença do amigo que
a morte
arrebatara.
No leito de
recuperação do grande instituto beneficente a que fora recolhido, no mundo
espiritual, Licínio chorou de alegria ao revê-lo, e nós, enternecidos,
seguimos, frase a frase, o diálogo empolgante que se articulou, após o júbilo extrovertido
das saudações.
— Mota, meu caro
Mota – soluçou o desencarnado, com impressionante inflexão –, a morte é apenas
mudança... Cuidado, meu amigo! Muito cuidado!... Quanto tempo perdi, em razão
de minha ignorância espiritual!... Saiba você, Mota, saiba você que a vida
continua!...
— Mas eu sei
disso, meu amigo – ajuntou o visitante, no intuito de consolá-lo –, desde muito
cedo entrei no conhecimento da imortalidade da alma. O sepulcro nada mais é que
a passagem de um plano para outro... Ninguém morre, ninguém...
— Ah! você sabe
então que o homem na Terra é um Espírito habitando provisoriamente um engenho
constituído de carne? Que somos no mundo inquilinos do corpo? – indagou Licínio,
positivamente aterrado.
— Sei, sim...
— E você já foi
informado de que quando nascemos, entre os homens, conduzimos ao berço as
dívidas do passado, com determinadas obrigações a cumprir?
— De modo
perfeito. Muito jovem ainda, aceitei o ensinamento e a lógica da
reencarnação...
— Mota!...
Mota!... – gritou o outro visivelmente alterado.
— Você já
consegue admitir que nossas esposas e filhos, parentes e amigos, quase sempre
são pessoas que conviveram conosco em outras existências terrestres? Que
estamos enleados a eles, frequentemente, para o resgate de antigos débitos?
— Sim, sim, meu
caro, não apenas creio... Sei que tudo isso é a verdade inconteste...
— E você crê nas
ligações entre os que voltam para cá e os que ficam? Você já percebe que uma
pessoa na Terra vive e respira com criaturas encarnadas e desencarnadas? Que podem
existir processos de obsessão entre os chamados vivos e mortos, raiando na
loucura e no crime?!...
— Claramente,
sei disso...
O interlocutor
agarrou-lhe a destra e continuou, espantado:
— Mota! Mota!
Ouça!... Você está certo de que a vida aqui é a continuação do que deixamos e
fazemos? Já se convenceu de que todos os recursos do plano físico são
empréstimos do Senhor, para que venhamos a fazer todo o bem possível, e que ninguém,
depois da morte, consegue fugir de si mesmo?...
— Sim, sim...
Nesse instante,
porém, Licínio desvairou-se. Passeou pelo recinto o olhar repentinamente
esgazeado, fez instintivo movimento de recuo e bradou:
— Fora daqui,
embusteiro, fora daqui!...
O visitante,
dolorosamente surpreendido, tentou apaziguá-lo:
— Licínio, meu
amigo, que vem a ser isso? Acalme-se, acalme- se... Sou eu, Joaquim Mota, seu
companheiro do dia a dia...
— Nunca!
Embusteiro, mistificador!... Se ele conhecesse as realidades que você confirma,
jamais me teria deixado no suplício da ignorância... Meu amigo Joaquim Mota é
como eu, enganado nas sombras do mundo... Ele foi sempre o meu melhor irmão!...
Nunca, nunca permitiria que eu chegasse aqui, mergulhado em trevas!...
Mota, em pranto,
intentava redarguir, mas interferimos, a fim de sustar o desequilíbrio e, para
isso, era preciso afastá-lo de imediato.
Mais alguns
minutos e o advogado reapossou-se do corpo físico. Nada de insegurança que o
impelisse à ideia de sonho ou pesadelo. Guardava a certeza absoluta do
reencontro espiritual.
Estremunhado,
ergueu-se em lágrimas e, sequioso de ar puro que lhe refrigerasse o cérebro em
fogo, abriu uma das janelas do alto apartamento que lhe configurava o ninho
doméstico.
Mota contemplou
o casario compacto, onde, talvez, naquela hora, dezenas de pessoas estivessem
partindo da experiência passageira do mundo para as experiências superiores da
vida maior e, naquele mesmo instante da madrugada, começou a pensar, de modo
diferente, a respeito do Espiritismo e da sua divulgação.
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